O legado do Berlusconi

OPINIÃO

Luca Bussotti

A primeira questão que uma análise política minimamente fundamentada, depois da morte do Silvio Berlusconi semana passada, é necessário colocar tem a ver com o tipo de legado que ele deixou, quer a nível nacional, quer em termos internacionais.

Berlusconi era um indivíduo que teve pelo menos três momentos marcantes em sua vida: o relacionado com suas actividades empresariais; o ligado ao mundo político; e finalmente a sua inserção como presidente do Milan, portanto no cenário desportivo.

Começando por este último aspecto é possível dizer que, aqui, há um consenso generalizado de que ele foi um grande inovador, projetando a dimensão futebolística italiana num patamar internacional, a que nunca antes tinha chegado. O Milan do Berlusconi – principalmente com a condução técnica de Artigo Sacchi, mas também de Capello e Ancelotti – foi um exemplo de organização interna, jogo espectacular, vitórias na Itália e na Europa e coragem, como quando escolheu Sacchi como treinador. Um Sacchi que acabava de terminar uma boa temporada treinando o Rimini, na série B italiana, desconhecido aos demais, mas que impressionou Berlusconi para seu jogo ousado, ofensivo e brilhante que depois Sacchi, com o Milan dos holandeses, voltou a propor, humilhando equipas como Barcelona, Steaua Bucarest e muitas outras.

O mesmo espírito de inovação foi aplicado por Berlusconi ao business. Um espírito, porém, que se cruzou, desde os primeiros anos de actividade,  na construção civil, com relações perigosas e que o acompanharão durante a vida inteira, a com a máfia siciliana e com organizações eversivas, como a P2 de Lício Gelli, de que ele fazia parte. Na construção civil Berlusconi “inventou” Milano 2 e depois Milano 3, dois bairros residenciais da maior cidade italiana, juntamente com Roma, e que lhe induziram a pedir a proteção da máfia. Com efeito, uma sentença do tribunal diz claramente que seu eterno braço direito, Marcello dell’Utri (condenado a 7 anos de prisão) fez a ponte entre Berlusconi e  com Stefano Bontade, na altura o Boss da máfia de Palermo, para garantir proteção ao Berlusconi e sua família, em troca de um mensal que o empresário milanês devia depositar em contas desta poderosa família siciliana. O Sr. Mangano, expoente de ponta dos Bontades, foi por muito tempo o chauffer de Berlusconi, vivendo na vivenda de Arcore juntamente com a família do Cavaleiro (título que lhe foi atribuído em 1977 pelo Estado italiano).

Mas Berlusconi foi homem da Primeira República e de ligações inconvenientes não só por suas relações comprovadas com a  máfia, assim como com os dois principais partidos políticos da década de 1980: Democracia Cristã e Partido Socialista. E se ligou sobretudo ao líder deste último, Bettino Craxi, que acabou morrendo fugitivo na Tunísia depois que os juízes de Milão desvendaram uma série de práticas de corrupção que provocaram a queda daquele sistema político, filho da guerra fria.

Órfão do Craxi, em 1994 Berlusconi resolve descer na arena política de forma directa, para proteger seus interesses milionários que no entanto tinham amadurecidos graças a abertura das primeiras TV privadas da Itália, do grupo Fininvest. E em poucos meses, aliando-se com a direita herdeira do fascismo e com a nova direita da Liga do Norte de Umberto Bossi, com o seu Forza Itália Berlusconi ganha as eleições gerais, formando seu primeiro governo. Foi por quatro vezes primeiro ministro, continuou a ter problemas judiciários, com uma condenação a 4 anos por fraude ao fisco, e uma série de prescrições por crimes diversos, desde a corrupção até a prostituição de menores, com o seu “Bugna-Bunga” na vivenda de Arcore que representou a parte eticamente mais baixa da sua vida, privada e pública, do Cavaleiro.

Berlusconi não teve realizações institucionais relevantes como primeiro ministro. Fora das 60 leis as personam que ele mandou aprovar a um parlamento que controlava, para evitar demais problemas judiciários, não se recordam normas importantes aprovadas pelos seus governos em benefício do povo italiano, mas apenas promessas mirabolantes nunca cumpridas. A sua revolução liberal nunca foi realizada, continuando a Itália a ser um país de grandes e pequenas corporações que Berlusconi e a direita têm continuado a alimentar. Mas Berlusconi conseguiu algo que parecia inacreditável na Itália dos primeiros anos Noventa: juntar as várias direitas presentes no país, que até então estavam fora dos grandes jogos políticos nacionais. Fê-lo graças a sua intuição política e também ao poder do seu dinheiro, com que comprou deputados, juízes e qualquer pessoa que podia servir para realizar seus objectivos.

Alérgico aos partidos, sindicados, regras da democracia liberal que ele invocava mas que nunca respeitou, baseou grande parte do seu sucesso político no poder das suas televisões, numa linguagem simples e por vezes barata, em suma, no seu populismo, que depois passou nas mãos de Trump, Bolsonaro e outros expoentes da direita contemporânea.

Hoje, na Itália, a direita governa o país, depois das últimas eleições ganhas em 2022. Forza Itália é um partido residual, com cerca de 7% dos votos, sinal de que a parábola política do Berlusconi já tinha terminado pelo menos desde 2011, quando seu último governo caiu. Seu legado de uma direita unida, corporativa e pouco liberal, populista e que consegue falar uma linguagem simples e acessível passou definitivamente a constituir um dos elementos peculiares do cenário político italiano, com evidentes reflexos a nível internacional. A nova direita europeia, porém, faz registar traços de intolerância contra as minorias de vária natureza, a partir dos migrantes provenientes da África, de que Berlusconi não era o portador, mas que teve de tolerar para se garantir a maioria que lhe permitiu tutelar seus enormes interesses, que hoje totalizam um património calculado em quase 5 mil milhões de dólares, cujo destino será dado a conhecer só depois da leitura do testamento.

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