Eleições que se transformam em filme de terror

OPINIÃO

Alexandre Chiure

De um simples exercício democrático em que as populações participam, através do voto, na escolha dos novos órgãos autárquicos para os 65 municípios, as eleições da semana passada mais pareciam um filme de terror baseado numa história de ficção do que propriamente com um processo eleitoral normal.

A votação até começou bem com os eleitores a dirigirem-se, logo pela manhã, às assembleias de voto para cumprir o seu dever cívico. Tudo decorria a mil maravilhas até quando o sufrágio se transformou, em algumas autarquias do país, numa película com o selo de Hollywood.

Primeiro, são os papéis que se inverteram. A polícia, que continua a não saber se comportar como republicana, toda autoritária e a privilegiar o uso da força, assumiu o protagonismo não recomendável pela CNE e os partidos políticos, coligações de partidos e associações concorrentes, como actores secundários.

Em plena votação, que era suposto ser um momento de festa, assistiu-se a disparos, matando e ferindo cidadãos indefesos, incluindo uma criança de 12 anos, em Chiure, Cabo Delgado, e ao lançamento de gás lacrimogénio em Nampula, gerando uma grande confusão entre a multidão que escorraçava indivíduos que queriam fazer enchimento de urnas.

Populares, vigilantes por confiança aos órgãos eleitorais, surpreenderam membros e simpatizantes da Frelimo e a Renamo com boletins de voto já preenchidos à espera de oportunidade para introduzi-los nas urnas. Os casos relevantes envolveram um agente da UIR, em Nampula, que estava na sua posse de 10 unidades e uma docente universitária, com 19.

Depois era o problema das credenciais que não foram emitidas a favor de alguns observadores nacionais, apesar de terem sido solicitadas atempadamente junto dos órgãos eleitorais. O mesmo aconteceu com formações políticas da oposição, cujos mandatários não puderam acompanhar de perto o processo de votação e de contagem dos votos, facto que pesou para a anulação das eleições em certos distritos municipais pelos tribunais, em resposta a recursos interpostos pela Renamo e Nova Democracia, este, no caso de Chókwè.

Ao cair da noite, a situação piorou. Alguns municípios ficaram sem energia eléctrica no momento crucial de contagem dos votos e o apuramento dos resultados nas mesas, facto que não foi bem visto.

Enquanto isto, membros de uma mesa de votação interromperam estranhamente a contagem dos votos e abandonaram a sala, numa escola em Maputo, acusando cansaço. Além de tratar-se de um insólito, revela uma total irresponsabilidade por parte deles. Não têm a noção do que isso significa para um processo eleitoral, com o risco de alguém adulterar os resultados.

Nesse rol de irregularidades, presidentes das assembleias de voto, que não foram dois ou três, mas muitos e espalhados por vários municípios, em particular os mais disputados que os outros, recusaram-se a assinar as actas e os editais, alegando que estavam à espera de ordens superiores para o efeito.

Pelas suas atitudes fora de comum, ficou claro que os fulanos obedeciam a um comando exterior não oficial, a verdadeira CNE e STAE, com poderes supremos para mandar e desmandar a seu bel-prazer em detrimento dos órgãos eleitorais instituídos.

Por outras palavras dizer que a CNE e o STAE que todos nós conhecemos não mandam praticamente em nada. Há uma outra CNE e STAE que ditam ordens para que as coisas aconteçam ou deixem de acontecer, o que é, no mínimo, triste. Se eleições é isto, então desisto. Não faz sentido gastar dinheiro para legitimar brincadeiras destas.

O outro espectáculo que nos foi dado a assistir tem a ver com os resultados parciais saídos das mesas. Casos houve em Maputo, Matola, Quelimane, Nampula e noutros municípios em que no final da contagem dos votos, os resultados ditaram vitória para o partido X e no dia seguinte esse mesmo partido ser declarado vencido.

Por exemplo, na noite da votação, dormimos cientes de que a Renamo tinha ganho em determinadas assembleias de voto em Maputo, Matola e noutras autarquias, tomando como base os editais afixados e divulgados em canais de televisão nacionais. Quando acordamos, os resultados já eram outros. Deu para perceber que houve, aqui, um golpe de editais.

Perante este quadro, os órgãos de administração da justiça têm a responsabilidade de salvar estas sextas eleições, evitando que resultem em convulsões sociais que podem, futuramente, evoluir para guerras sem sentido. Acima de tudo, os tribunais, vistos como a reserva moral no meio deste pandemónio, têm a tarefa de resgatar a credibilidade de instituições públicas.

O trabalho até aqui feito é positivo, mas é preciso ir mais a fundo da questão. Muita coisa deve ser corrigido. O volume de irregularidades registadas é grande e tira o brilho de todo o processo eleitoral.

Alguém perguntava-me se é possível o partido que suporta o governo ganhar em 64 das 65 autarquias que estiveram em concurso e a Renamo, em nenhuma, num país com um índice elevado de descontentamento popular, revelando um desgaste de imagem da parte deste, resultante do custo de vida insuportável, promessas não cumpridas, falta de emprego, habitação e oportunidades para jovens, a arrogância que caracteriza alguns governantes, problemas de enquadramento dos funcionários no âmbito de TSU, corrupção envolvendo dirigentes, desigualdades sociais e outros? Tive dificuldades de responder, num cenário em que estes foram, para mim, os principais adversários do partido no poder nestas eleições e serão igualmente nas gerais de 2024.

Esta é a razão da frustração dos moçambicanos, em particular de jovens que não compram o discurso sobre Luta Armada de Libertação de Moçambique. Jovens que procuram hoje o conforto na Renamo e foi a sua aposta nestas eleições em busca de alternância no poder, num voto mais de punição ao partido Frelimo do que propriamente de militância. São esses mesmos que aderem às manifestações reclamando os resultados eleitorais.

Depois destas eleições, a família Frelimo, querendo reverter a situação, deve sentar e reflectir seriamente sobre como é que tem lidado com o povo. Talvez chegará à conclusão de que está a ser arrogante ou que, em algum momento, se distanciou do povo ou, ainda, que deve regressar aos tempos em que o povo era a Frelimo e a Frelimo, o povo.

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