- Funeral de Mano Shottas se torna palco do “ritual de sangue” e arranca mais almas
- “Vou parar de gravar … estou a morrer” – últimas palavras de uma morte assistida ao vivo
- Desde o dia seguinte, a fronteira de Ressano está a operar. Só teve pausa para funeral
- Pelo menos dois jovens morrem e mais de uma dezena de feridos
As manifestações convocadas por Venâncio Mondlane desde 24 de Outubro e que estão prestes a completar dois meses, com paralisação de actividades e circulação de veículos, para além de Moçambique, está a afectar a economia dos países vizinhos. A África do Sul é um dos países mais afectados, com relatos de milhões de randes em prejuízos para os produtores que tem o nosso país como mercado, bem como a indústria mineira, com destaque para a do ferro crómio e empresas transportadoras, que diariamente perdem milhões com a paralisação. A situação tem levado o Governo sul-africano a pressionar a contraparte moçambicana, tendo se colocado até a disposição para escoltar os camiões que já faziam uma fila de cerca de 20 km do lado do país vizinho. Pressionado e a cair no descrédito por permitir que civis interrompam a circulação de veículos, o Executivo de Filipe Nyusi deu ordens, na passada quinta-feira, para uma larga operação relâmpago de várias subunidades da Polícia da República de Moçambique (PRM) que permitiu a abertura da fronteira, mas com um grande saldo de sangue. Mano Shottas, jovem blogueiro, acabou se tornando o principal símbolo da violência policial ao filmar a própria morte, após ser atingido por balas reais, quando registava imagens da operação policial com agentes a atirarem indiscriminadamente gás lacrimogéneo nas casas. No seu funeral, voltou-se a derramar sangue de outros jovens.
Evidências
Eram por volta das 16 horas quando dois autocarros, escoltados por cinco Mahindras, chegaram a Ressano Garcia naquela quinta-feira e logo exigiram a desobstrução da via para permitir a passagem de camiões que estavam bloqueados. Passava um dia depois do fim da famosa fase 4×4, mas um autocarro e alguns camiões continuavam a bloquear a passagem, não permitindo o trânsito de Ressano para a Cidade de Maputo e nem de Ressano para África do Sul.
O ultimato não foi atendido pelos manifestantes, que num primeiro momento pensavam tratar-se de um reforço de polícias de guarda de fronteira. Contrariada, a UIR abriu fogo bem à entrada da vila, próximo às bombas de combustível e continuou a perseguição nos bairros onde de forma indiscriminada atirou balas reais e gás lacrimogêneo.
No lugar errado e hora errada estava o jovem Mano Shottas que, com recurso a um celular, foi gravando e denunciando ao vivo os excessos da UIR, coadjuvada pela GOE e polícia de fronteira camuflada, esta última que conhece bem os bairros, o que fez com que a perseguição fosse até nos pontos mais recônditos.
“Estou nem aí se eles (…) eu sou povo, … estão a atirar gás lacrimogêneo. Naquela casa tem crianças “, denunciou o jovem instantes antes de ser baleado mortalmente. Continuava a filmar, quando de repente nota-se uma perturbação na câmara enquanto se ouviam tiros no fundo. Instantes depois o jovem confirmava o seu trágico destino.
“Pessoal, não posso mais filmar (…) me balearam. Socorro, socorro. Pessoal, levei tiro, levei tiro pessoal (…) e eles continuam a disparar. Fui alvejado pessoal (…) fui alvejado. F*d*s, estou a morrer, estou a morrer. Estou a morrer (…) pessoal!”, disse em jeito de últimas palavras Mano Shottas, enquanto estava deitado com o telefone focando na sua cara e a dado momento se direciona para o céu, como que mostrando o caminho do Shottas. Para além de mano Shottas naquela noite houve pelo menos seis feridos.
Segundo relato da sua sogra posto a circular num grupo de WhatsApp dos residentes de Ressano Garcia, o jovem perdeu a vida em Moamba, no hospital.
Em jeito de retaliação, os manifestantes, correram e foram incendiar a sede do Posto Administrativo, a casa do Chefe do Posto e de um influente membro do partido Frelimo, já que a sede desta formação política foi reduzida em cinzas há já alguns dias.
Os manifestantes só foram contidos quando já estavam a se dirigir em direção à esquadra onde pretendiam atear fogo com recurso a cocktails molotov e pneus. Tentaram ainda assim incendiar uma agência bancária e os antigos escritórios da migração. Dispersos e sendo perseguidos nas suas casas, os manifestantes se retiraram de combate, mas já pela madrugada, conseguiram incendiar a agência bancária e parte das instalações do Porto Seco de Ressano Garcia, para além de uma casa nocturna, pertencente a um membro da Frelimo.
O dia de sexta-feira iniciou como se nada tivesse acontecido. A fronteira abriu e funcionou normalmente, mas sob tensão constante e com presença policial reforçada. Durante o dia todo o trânsito fluiu o que permitiu dar vazão a longa fila de carros que pretendiam seguir viagem para os dois sentidos.
O funeral que roubou mais duas almas
A paz reinou em Ressano Garcia até pouco depois do enterro de Mano Shottas, no passado sábado, pois por volta das 15 horas, a vila de Ressano Garcia voltou a transformar-se num verdadeiro cenário de guerra. Enquanto terminavam os discursos no cemitério, alguns jovens decidiram ir incendiar um dos dois camiões que haviam sido usados para barrar a circulação, para dar lugar ao velório no meio da estrada, bem no local onde Shottas foi assassinado.
Em resposta, várias unidades da UIR, GOE e Polícia de Fronteira, abriram fogo real contra os populares que assistiam o funeral. Nesse processo nem a memória dos mortos foi poupada. bombas de gás lacrimogénio foram lançadas entre as campas, o que levou os populares a deixarem o local em debandada.
Após isso, seguiu-se uma perseguição e uma abordagem agressiva da polícia que resultou em pelo menos dois óbitos e um número não especificado de feridos. Há quem fale de quatro óbitos. Entre as vítimas mortais está o jovem Puco, nativo de Ressano Garcia, e Xadreque Cumaio, natural de Chongoene, que se encontrava naquela vila fronteiriça por causa do emprego.
Refira-se que a situação continua tensa, com forte presença policial, mas a fronteira está aberta e a funcionar ainda que condicionada a forte vigilância, o que permite o escoamento de camiões idos da África do Sul, satisfazendo assim um dos desejos do Governo sul-africano que já estava com os nervos a flor da pele.
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