Dois anos se passam desde que a voz potente e incisiva de Edson da Luz, artisticamente tratado por Azagaia, se calou por conta de uma crise de epilepsia. O rapper moçambicano, conhecido por suas letras que denunciavam a corrupção, desigualdade e injustiças sociais, deixou um legado inesquecível. A sua família, amigos e colegas recordaram o dia 09 de Março, com grandes feitos do artista e o seu impacto na sociedade. Uma figura que fez e ficou na história através de uma caneta, um papel, poesia e activismo social, instrumentos que usava conscientizar, criticar, afrontar e “estremecer” o sistema governativo apesar de perseguição política para o “abater”
Elisio Nuvunga
Em vida, Azagaia não se limitou a compor rimas, era um cronista como José Craveirinha; o qual relatava a realidade do povo moçambicano utilizando a arte como um instrumento denunciante e vigilante contra os governantes moçambicanos e africanos. Nas suas músicas, o rapper recorria a metáforas e a uma linguagem acessível para as diferentes camadas sociais, descrevendo de forma minuciosa os desafios, a revolta e a esperança de um povo que sempre sonhara com melhores condições de vida e um Moçambique melhor sob o ponto de vista de desenvolvimento (educação, transporte, saúde…).
Músicas como “Aí de nós”, “Marcha”, “Minha geração”, “Mentiras da verdade” e outras obras musicais tornaram-se hino de uma geração, expressando angústias, frustrações, anseios de vários jovens que se identificavam com a verdade exposta nas músicas.
Conhecido por sua capacidade de intervenção social gerando criticas e reflexões, nunca foi bem recebido pelos círculos do poder, mas sempre foi confortado pelo povo, eis que chegou a se intitular o “eterno vencedor das causas perdidas” e a “voz do povo e dos sem voz”.
As suas músicas transcendem fronteiras geográficas e geracionais, conectando-se com aqueles que buscavam por uma voz ou um líder de opinião para expor os seus problemas e confrontar a máquina governativa.
Apesar do vazio que a morte de Edson da Luz deixa nos corações dos moçambicanos e no espaço lusófono; ainda ecoam as suas memórias, o impacto e o legado na esfera social, sobretudo artística.
“Azagaia foi um verdadeiro profeta”
Para a rapper, advogada e activista social Iveth, além de apenas relembrar os feitos e o seu impacto na sociedade, considera-o “verdadeiro profeta porque aquilo que dizia” enquanto em vida “hoje está acontecer” em várias esferas sociais até porque “sempre manifestou preocupação com assuntos candentes que inquietam o povo.
Aliás, Azagaia sempre quis chamar a consciência das massas bem como chamar atenção do povo através das suas músicas.
Mas do que consciencializar e ser herói, foi um artista audaz que, sem reservas, tocava em assuntos sensíveis que os detentores do poder não queriam que fossem revelados ou desvendados, como é o caso do “terrorismo em Cabo Delgado, a questão de manifestações e das multinacionais” instaladas no país, nomeadamente, porque a sociedade está controlada pelo regime que está prontamente a agir.
“Ele quis nos alertar do que se estava a passar na verdade, eu acho que Azagaia quis nos abrir a vista porque em 2007, quando lança ‘Mentiras da verdade’, a falar e a sugerir ‘que se eu dissesse que tudo aquilo que a gente acha que verdade é mentira (…)‘ ele aparece como um jovem a dizer coisas que não se dizem, que são proibidas de dizer porque a sociedade até certo ponto está controlada por um sistema que não permite uma liberdade efectiva”, Sublinhou Iveth.
Ademais, foi também “um excelente liricista, que sabia colocar não só a sua voz mas também colocar a mensagem de forma estratégica para abrir os olhos a esta juventude e deixar esse legado de coragem”.
O mais interessante, segundo acrescenta a activista social, sempre mostrou coragem e uma capacidade crítica para a camada juvenil e foi, assim, um exemplo de resistência, independentemente das circunstâncias.
“Uma coisa que ele sempre dizia nas suas músicas é que não há que ter medo porque o país é nosso e nós também precisamos de um sistema que nos acolha e não nos exclua. Azagaia significa muito para a juventude em termos de revolução, em termos de coragem, em termos de sair da caixa e nos tornarmos melhor e a seguir os nossos sonhos. Com os poucos recursos que ele tinha, persistiu verdadeiramente na música, ele é um exemplo de persistência e de fé naquilo em que acredita e naquilo que faz e de que gosta”.

Tornou o rap em um “objecto de estudo”
O rapper e sociólogo moçambicano Hélder Leonel descreveu o saudoso músico como “uma pessoa rara”, que sem muito esforço se envolveu com a cultura “hipopiana” mas muito cedo se identificou-se com assuntos políticos, destacando-se ainda mais na cena de rap por diversas razões, especialmente por tornar o movimento em um objecto de estudo nas universidades, reduzindo, assim, o nível de marginalização do rap.
“A música rap é, em geral, marginalizada, mas Azagaia, em particular, conquistou as massas e conquistou simpatias para além da juventude e de classes sociais, tornando-se objecto de estudo nas áreas das ciências da comunicação e ciências sociais”, destacou o sociólogo, acrescentando que a popularidade do artista surgiu, em parte, quando “os nossos meios de comunicação sociais tradicionais deram as costas à sua música e ele soube capitalizar isso e tornar-se um mártir”.
Ademais, através da sua arte conseguiu “descrever os problemas próprios de um país com níveis de desenvolvimento como o nosso de forma simples, criativa e menos complexa, impactou profundamente os moçambicanos” para além de os convidar “a reflectirem sobre a necessidade de aceitação e inclusão de poderes evidentes, não legalmente estabelecidos na construção da nação”.
Impactou significativamente na “revolução de hoje”
Por sua vez, o músico e activista social Stewart Sukuma destacou o rapper como uma figura que conseguiu fazer a música em várias vertentes na esfera social, especialmente para o movimento Hip-hop.
“O Azagaia, para além de ter sido uma força indiscutível e incontornável, foi também o início de uma nova abordagem musical e poética no âmbito social. Ele era visto no meio artístico da lusofonia como um dos melhores intérpretes na categoria de hip-hop. Socialmente, uma força da natureza, iluminado e destemido desbravou a cabeça dos moçambicanos como ninguém e sem margens para equívocos”, sublinhou Sukuma.
Sukuma, que é também reconhecido pela sua força e bravura quando se trata de assuntos e causas sociais, entende que a partida prematura do artista acrescentou um certo nível de responsabilização para fazer face à continuidade do legado do saudoso, até porque as convicções de ambos sempre convergiram.
“Para mim, foi a confirmação de que eu nunca estive errado nas minhas reivindicações e convicções sociais e políticas. Depois do seu desaparecimento físico, senti-me na obrigação de materializar os seus pensamentos, continuando a fazer com maior agressividade o meu papel de intervenção social”, acrescentou.
Por outro lado, o músico considera “legítimo que se marque esta data como um marco histórico dentro da cultura moçambicana”, pois a “revolução de hoje tem, sim, a voz do Azagaia como timoneiro e nunca será relegada para o esquecimento” e assegurou que dentro em breve a classe artística vai anunciar a data para expressar homenagem ao Azagaia.
Em linhas gerais, o legado e o impacto do Azagaia vai além das suas obras musicais e activismo social-político. É um acto de coragem, resistência e compromisso social que continua a inspirar e a mobilizar as novas gerações. A sua arte ainda continua a ser um testemunho de revolução e luta em prol do bem colectivo para, assim, combater as injustiças, a corrupção, as desigualdades, a intolerância política.

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