Trabalho infantil empurra milhares de crianças ao “marginalismo”

DESTAQUE SOCIEDADE
Share this
  • Quando a pobreza e a falta de oportunidades podem sentenciar o futuro
  • Mais de dois milhões de crianças perdem a infância no trabalho infantil
  • Gaza, Zambézia, Inhambane e Nampula apresentam maior índice de trabalho infantil
  • “Não temos um mandato específico para a actuação no sector informal” – MTGAS
  • Sociólogo culpa factores socioculturais, familiares e falta de serviços básicos

Quando o semáforo fica vermelho, os carros param — e, com eles, os sonhos de João, um menino de 14 anos a quem a vida impôs cedo demais a luta pela sobrevivência. Entre buzinas, fumo e o calor escaldante do asfalto da Avenida 24 de Julho, ele corre de carro em carro com uma garrafa de água e um limpador de vidros na mão, à procura de um pára-brisa para limpar e de algumas moedas que lhe garantam o pão de cada dia. Natural de Nhancutse, no distrito de Chongoene, província de Gaza, João terminou a 7.ª classe com o desejo de continuar os estudos, mas a pobreza extrema não lhe deixou escolha: trocou os cadernos pelo limpador de vidros. Hoje, entre o perigo e a indiferença dos condutores, trava uma luta diária para sustentar os pais que ficaram em Gaza. Histórias como a de João repetem-se não apenas naquele e noutros semáforos da cidade de Maputo, mas nas grandes cidades de Norte a Sul do País. São mais de dois milhões de crianças que vêem a infância desaparecer nas esquinas, avenidas e mercados. Crescem antes do tempo, trocando os sonhos pela sobrevivência, num País onde o trabalho infantil continua a roubar o futuro de quem ainda mal começou a viver, sob o olhar impávido do Estado.

Edmilson Mate

João é o retrato de mais de 2,4 milhões de crianças moçambicanas que perdem a infância no trabalho infantil. Segundo dados do Ministério do Trabalho, Género e Acção Social (MTGAS), as províncias de Gaza, Inhambane, Nampula e Zambézia apresentam as maiores taxas de trabalho infantil em actividades laborais perigosas.

Na cidade de Maputo, o número de crianças no sector informal aumentou de aproximadamente 4.000 em 2022 para mais de 4.500 em 2023, com estimativas a indicarem um crescimento de 15% em 2024. Essas crianças enfrentam riscos diários, como atropelamentos, assaltos, violência e tráfico de pessoas, especialmente durante a noite, quando a vulnerabilidade é ainda maior.

A pobreza coloca muitas crianças em situação de vulnerabilidade. Em zonas rurais, famílias carentes chegam a entregar os filhos a estranhos, motivadas por “contratos verbais” que prometem emprego ou a possibilidade de continuar os estudos nas cidades.

Mas, ao chegarem ao destino, a realidade é outra. As crianças enfrentam trabalho degradante, com jornadas que ultrapassam as horas normais, vivem em condições precárias e muitas vezes não recebem pagamento justo. O sacrifício quase sempre nunca é compensado, pois grande parte do rendimento é destinado a sustentar as famílias de acolhimento, perpetuando um ciclo de exploração e privação de direitos básicos.

Ao longo da Avenida 24 de Julho, uma das principais artérias da capital, entre o som dos motores e a pressa dos condutores, está João, de 13 anos, com uma garrafa de sabão líquido numa mão e um limpador de vidros na outra. Proveniente da província de Gaza, o menor veio à capital em busca de melhores condições de vida.

“Quando terminei a 7.ª classe, tive de parar de estudar e vir para Maputo porque tinha passado para a 8.ª classe e pediam dinheiro de matrícula, uniforme e cadernos. Mas as condições dos meus pais já não permitiam que eu continuasse na escola, porque às vezes nem tínhamos o que comer. Então cheguei aqui em Junho deste ano e aprendi este trabalho na estrada”, descreve.

Histórias de quem trocou os cadernos pelo trabalho devido a pobreza

Entre o som das buzinas e o risco constante de atropelamento, João procura um vidro para limpar a cada semáforo vermelho. Questionado se não tem medo, hesita, baixa os olhos e responde com voz trémula:

“Sei que é arriscado, mas tenho de trabalhar. Tenho de cuidar da minha mãe, que ficou em Gaza. Todos os meses mando dinheiro para ela e também pago renda, porque vivo com outras pessoas que trabalham aqui”, relata o menor.

Apesar das enormes dificuldades, o menino não deixa de sonhar. Questionado pela nossa equipa de reportagem sobre o que gostaria de ser quando crescer, respondeu com um brilho nos olhos: “Quero ser professor porque quero dar uma vida melhor aos meus pais. Já passei a 7.ª classe, e quando juntar um bom dinheiro vou matricular-me de novo na escola”, diz, confiante.

Na mesma avenida onde João ganha o pão de cada dia, encontramos Alberto, de 11 anos, também natural da província de Gaza, localidade de Macupulane. Depois de alguma resistência, o menino aceita conversar com o Evidências. Com olhos inocentes e rosto já marcado pelo cansaço, segura um balde de ovos, com o olhar atento ao produto.

Alberto conta que veio para Maputo após uma “promessa” de trabalho feita por uma senhora residente no bairro da Inhagoia. Hoje dorme numa dependência dessa casa, junto de outras quatro crianças.

“Eu vivia em Gaza, em Macupulane, e estudava a 5.ª classe. Mas quando a senhora para quem trabalho ligou para a minha avó a dizer que queria alguém para ajudar, a minha avó disse que eu já era homem, então vim. Comecei a trabalhar no ano passado. Somos cinco meninos: vendemos ovos, rachel e palone pela cidade. Acordamos às 5h para vender mais e só regressamos depois de acabar o produto”, desabafou.

Pelo trabalho árduo que faz nunca foi pago. Sabe apenas que recebe 1200 por mês, dinheiro que a sua (senhora) diz que envia mensalmente para a sua avó. A única coisa que ganha realmente é um prato de comida e algumas roupas.

“Ganho 1.200 meticais por mês. Como durmo lá, a senhora manda o dinheiro para a minha avó em Gaza e, às vezes, compra roupa para mim”, relata.

Enquanto João e Alberto sobrevivem nas avenidas da capital, Melinha (nome fictício), de 14 anos, natural de Inhambane, vê o seu futuro desaparecer diante dos próprios olhos. Cheia de sonhos e de um olhar humilde, encontrámo-la no mercado Ferroviário, em Maputo.

Natural de Vilankulo, foi arrancada da sua aldeia com promessa de continuar os estudos em Maputo, enquanto “brinca” com o bebé recém-nascido dos seus patrões. Mas, chegada à capital, a realidade foi outra. Nunca foi matriculada numa escola como prometido e em vez de babá foi transformada numa empregada responsável não só por cuidar de duas crianças, como também do lar da “tia” que a acolheu.

“Eu acordo cedo todos os dias. Lavo pratos, cozinho, arrumo a casa e cuido das crianças enquanto o tio e a tia vão trabalhar. Às vezes, eles gritam comigo, batem um pouco, mas não tenho para onde ir. Só posso ficar e trabalhar”, conta com voz baixa e olhos inocentes.

O salário que recebe é de 1.700 meticais, mas não fica com ela: vai directamente para a mãe, em Vilanculos, como acontece sempre nos casos de crianças vítimas de esquemas de tráfico humano. Apesar de tão pequena, Melinha carrega grandes responsabilidades.

“Eu levo o filho da minha tia para a escola, mas eu não vou. Eu queria estudar, mas a minha tia não deixa, porque diz que tenho de ficar com os filhos dela e cuidar da casa enquanto eles trabalham. Diz também que vim para Maputo para trabalhar, não para estudar, contrariamente à promessa inicial”, desabafa.

O dia-a-dia de Melinha é marcado por trabalho pesado, privação, medo e por vezes violência, entre outros abusos. Sem acesso à educação, vive uma infância perdida, desempenhando papéis de adulto, enquanto direitos básicos, como protecção e ensino, permanecem fora de alcance.

“Às vezes tenho vontade de fugir e voltar para a minha terra, mas lá também é difícil e a minha mãe não gostaria. Então não tenho como. Só posso continuar aqui, mesmo com medo da minha tia me bater às vezes”, diz, tímida, revelando a dura realidade de muitas crianças exploradas no País.

“A exploração infantil é resultado de factores socioculturais, familiares e da falta de serviços básicos”

Roque Tembo – Docente e sociólogo

Em entrevista ao Evidências, o sociólogo e docente Roque Tembo defende que a exploração infantil em Moçambique resulta da combinação de factores socioculturais, familiares e estruturais.

“Em muitas comunidades, persistem hábitos e costumes que acabam por violar os direitos fundamentais da criança, como o direito à vida e ao bem-estar. Em algumas zonas, ainda existe a ideia de que expor a criança a actividades perigosas é necessário para torná-la homem”, afirmou.

Tembo destacou ainda a pobreza familiar como uma das principais causas da inserção precoce da criança no trabalho informal.

“As famílias, em contextos de vulnerabilidade, vêem o trabalho infantil como uma forma de garantir rendimento e sobrevivência”, refere.

A falta de acesso à educação, saúde e protecção social agrava o problema e perpetua o ciclo de pobreza, impedindo muitas crianças de viver plenamente a infância.

O sociólogo alerta que a exploração infantil gera graves impactos sociais e psicológicos, afectando o desenvolvimento integral da criança.

“A criança perde o direito à infância, pode desenvolver várias patologias, ter baixo rendimento escolar e acabar por abandonar os estudos. Além disso, há consequências emocionais profundas, que comprometem o seu equilíbrio mental e moral”, explicou.

Roque Tembo reconhece que o combate ao trabalho infantil é complexo, devido à fragilidade e difícil aplicação das leis. Para o académico, a legislação actual ainda é insuficiente e carece de um enquadramento político e jurídico mais claro.

“É necessário fortalecer o quadro político e legal e torná-lo mais robusto. Mas também é fundamental compreender as dinâmicas culturais e melhorar os serviços públicos, como saúde, educação e proteção social. Não se pode combater este fenómeno apenas com campanhas de sensibilização. É preciso garantir fiscalização e responsabilização de forma abrangente”, defende.

Questionado sobre de quem é a responsabilidade em primeira instância no combate à exploração infantil, o sociólogo foi peremptório:

“Em primeiro lugar, da família, que é a base do desenvolvimento do indivíduo. Mas também do Estado, da sociedade civil, das igrejas e de todos os actores sociais, com o mesmo objectivo: erradicar a exploração infantil”, sublinha.

ROSC alerta para agravamento do trabalho infantil em Moçambique

Filipe Dumbo – Representante do ROSC

Em entrevista ao Evidências, Filipe Dumbo, gestor de plataformas digitais e visibilidade do Fórum da Sociedade Civil para os Direitos da Criança (ROSC), afirmou que o cenário actual de exploração infantil no país “tende a agravar-se”, apesar dos esforços de advocacia e sensibilização de várias organizações.

“O corpo da criança não está preparado para actividades pesadas. Muitas acabam por carregar cargas ou por trabalhar em garimpos, o que afecta o seu crescimento e a saúde. Uma criança que trabalha o dia inteiro e depois vai à escola dificilmente consegue aprender, o resultado é um adulto mutilado, sem oportunidades”, lamentou.

A ROSC tem desenvolvido campanhas de sensibilização, spots radiofónicos, cartazes nas redes sociais e workshops comunitários para alertar sobre os riscos do trabalho infantil. As acções decorrem em várias províncias, em parceria com organizações locais, como a SOPROC (Sofala), ACAB (Niassa) e OCALA (Nampula).

“Temos feito campanhas nos mercados e em zonas de grande movimento, onde muitas crianças são vistas a vender produtos ou a trabalhar. Também actuamos em áreas de mineração artesanal, onde há maior risco para a saúde e segurança das crianças”, destacou.

Nos últimos três anos, a rede estima ter alcançado entre duas a três mil famílias em sessões de sensibilização e mais de cinco mil pessoas através de campanhas porta a porta.

Apesar dos progressos, Dumbo reconhece que a situação se tem agravado devido às crises económicas, conflitos armados, desastres naturais e aumento da pobreza.

“Quando as famílias perdem os seus meios de subsistência, as crianças são as primeiras a sofrer. Sem protecção social e com o Estado em crise, muitas acabam empurradas para o trabalho infantil. Isso tem reflexos directos na educação, saúde e no futuro do País”, sublinha.

Do ponto de vista legal, Dumbo considera que Moçambique possui um quadro jurídico robusto, mas peca na implementação e fiscalização.

“Temos leis que proíbem o trabalho infantil antes dos 18 anos, com excepções a partir dos 15. Mas quem fiscaliza? Como se operacionaliza isso? É aí que está o problema. O país ratificou os protocolos n.º 138 e n.º 182 da OIT, mas falta fiscalização e vontade prática”, conclui.

“MTGAS não tem um mandato específico para actuar no setor informal”

Amélia Fernando Manjate, Chefe do Departamento de Estudos e Regulamentação da Direção Nacional do Trabalho

Em entrevista ao Evidências, Amélia Fernando Manjate, chefe do Departamento de Estudos e Regulamentação da Direção Nacional do Trabalho, explicou que o Ministério do Trabalho, Género e Acção Social (MTGAS) concentra as suas acções no sector formal, o que faz com que muitas crianças estejam condenadas à própria sorte, e sem cobertura de quem tem como missão garantir a protecção social básica.

“A fiscalização é feita no âmbito do sector formal. No sector informal, recorremos a parceiros estratégicos, como a polícia e os municípios, para combater o trabalho infantil”, disse a especialista.

Apesar das limitações legais, o ministério realiza acções de sensibilização para alertar a população sobre os riscos do trabalho infantil.

“Fazemos brigadas, palestras e capacitações. Recentemente, produzimos um vídeo que foi partilhado via WhatsApp e outras plataformas para sensibilizar a comunidade, incentivando que as crianças não deixem a escola para trabalhar”, explicou Manjate.

O MTGAS tutela a Inspecção-Geral do Trabalho (IGT), responsável por garantir o cumprimento da legalidade laboral. A IGT realiza inspecções planificadas ou extraordinárias, em resposta a denúncias.

“No sector informal, não temos mandato de actuação directa, mas promovemos acções educativas em mercados, escolas e comunidades, sempre em coordenação com a PRM e autoridades municipais, para evitar que crianças em idade escolar abandonem a escola para trabalhar”, acrescentou.

Nem todas as atividades exercidas por menores são consideradas perigosas — apenas aquelas que afectem o bem-estar, a saúde, a moralidade ou a segurança da criança são proibidas para menores de 18 anos, conforme o Decreto 68/2017. Algumas tarefas podem ser realizadas com supervisão de adultos, desde que não comprometam a frequência escolar.

Segundo Amélia Manjate, os sectores com maior incidência de trabalho infantil são a mineração artesanal, a agricultura, o trabalho doméstico e o comércio informal. As províncias mais afectadas são Zambézia e Tete (21,5%), seguidas de Inhambane (18,3%), Nampula (18,2%), Gaza (17,9%) e Manica (16,9%).

Sobre as sanções previstas para quem explora crianças, ela explicou que “as penalidades variam de multas administrativas a processos criminais, dependendo da gravidade da infracção. Nos casos das piores formas de trabalho infantil, a multa é duplicada e os autos de infracção são encaminhados ao Ministério Público, conforme prevê o Código Penal”.

Para a reintegração escolar das crianças exploradas, existem programas coordenados com o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano.

“No Plano Nacional de Acção para o Combate às Piores Formas de Trabalho Infantil, temos o Eixo 5, que prevê a retirada, reabilitação e integração das crianças no sistema educativo”, conclui.

Promo������o
Share this

Facebook Comments