Haja saúde!

OPINIÃO

Luca Bussotti

As notícias provenientes de fontes governamentais, juntamente com o debate na Assembleia da República, dão conta de uma situação da saúde moçambicana péssima e desesperante. Este cenário não é novidade: o histórico da expectativa de vida à nascença – que aumentou em termos absolutos – não melhorou significativamente com relação aos outros países. Com efeito, se, em 1960, o país (na altura ainda colónia portuguesa) se posicionou no lugar 165 a nível mundial, em 1980 estava já no 168, em 1990 no 176, e hoje no 172 para os homens e no 164 para as mulheres, dado que piora calculando a expectativa de vida aos 30 anos, voltando na posição 176 para os homens e 168 para as mulheres. Hoje, a expectativa de vida à nascença é de 57,7 anos, abaixo da própria média africana, de 59,6 anos.

Se formos a analisar as causas de morte será fácil ver que o HIV/SIDA ocupa ainda a primeira posição, causando 27% dos óbitos totais no país e classificando Moçambique como o terceiro país no mundo para incidência de morte desta doença. Outras doenças com alta incidência de mortalidade são tuberculose (8%), influenza e pneumonia (7,7%), malária (6,28%). Em todos estes casos não se trata de doenças novas, aliás, elas convivem com a população moçambicana há centenas de anos. Entretanto, ainda continuam a matar. Associado a isso, novas doenças estão a aparecer, principalmente de tipo cardiológico e ligadas a várias formas de cancro. Contra as tais doenças, a medicina moçambicana é quase impotente, pois os equipamentos para detectá-las são muito raros no país, assim como os médicos especialistas para tratá-las. Finalmente, a desnutrição crónica infantil interessa ainda a 41% das crianças moçambicanas, e a mortalidade para esta faixa etária muito jovem continua alta.

Os dados acima reportados se combinam com a ausência quase que total de pessoal médico: enquanto em África existem 2-3 médicos a cada 1000 habitantes, em Moçambique este dado desce para 0,03. Resultado: os poucos postos de saúde presentes no país, inclusive os hospitais, sofrem de uma carência estrutural de médicos (e enfermeiros), que tornam dificílimo o acesso à saúde para a população, principalmente a que vive no meio rural e que tem poucos recursos para se permitir tratamentos em clínicas privadas. Marcar uma consulta com um médico num hospital público tornou-se um privilégio para poucos, geralmente escolhidos a dedo…

Em paralelo, tais carências de pessoal tornam impossível o trabalho de assistência médica, sobretudo preventiva, no território, onde não há efectivos suficientes para cobrir toda a população. A carência da dita “medicina de base” representa, provavelmente, o espelho mais grave desta situação de deficiência crónica de pessoal médico qualificado.

É a partir dessas premissas que deve ser enquadrada a intervenção do ministro da saúde, Armindo Tiago, na Assembleia da República, respondendo às questões de alguns parlamentares dos partidos da oposição. Acima de tudo, o ministro confirmou que existe um hábito, constante e difuso, de maltratar os pacientes. Trata-se de uma admissão ao mesmo tempo importante e preocupante, pois significa que o actual titular da pasta da saúde tem uma noção muito bem clara daquilo que está a se passar nos hospitais e postos de saúde de Moçambique, cuja solução, porém, não está à vista. De facto, quando se diz que falta humanidade no atendimento e, se poderia acrescentar, que a corrupção penetrou mesmo no sector da saúde já faz muito tempo, se faz uma fotografia da situação actual, sem, todavia, apresentar soluções, que são, sem dúvida nenhuma, de longo prazo. Ao mesmo tempo, o ministro admitiu que a proliferação de instituições de formação na área da saúde, sem condições para o efeito, têm contribuído para piorar o quadro. Mais uma vez, o problema foi correctamente apresentado, entretanto, é evidente que é o próprio governo a autorizar tais instituições sem qualidade, portanto a solução, neste caso, está nas mãos do executivo.

A este quadro sombrio devem associar-se dois elementos mais recentes: por um lado, a falta de medicamentos que está se registando em todo o país; e as gravíssimas falhas na adjudicação das obras para construir o novo hospital de Nampula. Como tem explicado o ministro, quando 60% do dinheiro já foi entregue à empresa que tinha ganho o concurso, o contrato com a mesma foi cancelado devido a graves incumprimentos. Assim, o valor que sobrou não chega para completar esta importante obra (faltariam cerca de 5 milhões de dólares!), demonstrando, mais uma vez, quão importante seria um estado que funcionasse com critérios mais transparentes e com profissionais mais qualificados, em todos os seus sectores, principalmente quando se trata de adjudicações de construções desta relevância pública.

Se o quadro está tristemente traçado, não resta agora que encontrar as soluções: o ministro tem esboçado algumas delas na Assembleia da República, mas é evidente que o governo vai ter de abrir um diálogo sério com as várias componentes deste sector crucial para a vida dos moçambicanos, se necessário mexendo radicalmente a actual estrutura, com o domínio das clínicas privadas e a ausência da medicina de base no território. Se este governo terá ou não a coragem e a capacidade de inverter uma rota destinada a provocar a colisão do barco com o iceberg é assunto que ainda deve ser demonstrado. O que está certo é que medidas tapa-buracos já não serão suficientes: sem o retorno a uma política estratégica na área da saúde as coisas não irão melhorar significativamente para os próximos vinte anos.

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