“Inovação” do Governo empurra milhares de crianças para o curso nocturno

DESTAQUE SOCIEDADE
  • 7ª classe no secundário coloca Sistema de Educação à beira do colapso
  • Por causa da 7ª classe, Escolas Secundárias voltam a ter problemas de vagas
  • Alunos que no ano passado estudavam de dia forçados a ir ao curso nocturno
  • Pais e encarregados de educação defendem manutenção do anterior modelo

Nos últimos 15 anos, o Governo vinha reduzindo, de forma gradual, o número de turmas no curso nocturno. Pelo menos na cidade de Maputo, algumas escolas chegaram a extinguir o período pós-laboral por falta de alunos. Todavia, a introdução da nova Lei do Sistema Nacional de Educação, aprovada em 2018, que, dentre várias inovações, transfere a 7ª classe do ensino primário para o secundário, começa a dar sinais de que o Executivo deu, mais uma vez, alguns passos para trás. Em consequência da alteração, as escolas secundárias voltaram a ter graves problemas de vagas, o que vai empurrar milhares de crianças ao curso nocturno. É o caso da pequena Ágada Tembe, de 16 anos, que embora tenha feito a 9ª classe de dia em 2022, este ano vai fazer a 10ª classe de noite, porque a Escola Secundária da Ka-Tembe está com uma grande sobrecarga de alunos devido a introdução da 7ª classe, que não foi acompanhada pelo aumento de número de salas de aulas. A direção da escola reconhece e diz estar de mãos atadas. Este é apenas um exemplo do cenário que se verifica um pouco por todo o País.

Duarte Sitoe/Redacção

A partir do presente ano lectivo, a 6ª classe passa a ser a última classe do ensino primário e a 7ª classe a primeira do ensino secundário, no âmbito da implementação da Lei do Sistema Nacional de Educação (SNE). Entretanto, a inovação do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH) pode significar um forte revés numa das importantes conquistas dos últimos anos.

É que o Ensino Secundário Geral do Sistema Nacional de Educação nunca conseguiu responder a demanda das vagas em todo o território nacional, sendo que o turno nocturno sempre foi a alternativa. Mas, nos últimos anos, este subsistema de ensino estava a ficar para a história, havendo casos em que estava totalmente encerrado nalgumas escolas.

No entanto, a retirada da 7ª classe do ensino primário para o secundário veio sobrecarregar às Escolas Secundárias que já vinham se debatendo com um número limitado de vagas devido a indisponibilidade de salas de aulas. Como solução, muitas escolas em todo País, com maior prevalência nas zonas rurais, estão a obrigar muitos alunos com menos de 18 anos a estudarem no curso nocturno.

Trata-se de uma situação que, em 2022, o Movimento Educação para Todos (METP) já tinha criticado, alertando que as escolas, os professores, os pais e encarregados de educação não estavam preparados para responder às exigências da nova lei do Sistema Nacional de Educação.

Nalgumas escolas visitadas pelo Evidências, na cidade e província de Maputo, a nova Lei do Sistema Nacional de Educação está a gerar uma onda de descontentamento e desespero por parte de pais, encarregados de educação e alunos.

Algumas raparigas já pensam em desistir

Um dos desafios do País nos últimos anos é a retenção da rapariga nas escolas, mas esta luta parece estar também comprometida, pois nem todas as crianças têm condições para estudar a noite.

Ágada Tembe, de 16 anos, é disso um exemplo. A fazer 10ª classe este ano na Escola Secundária da Ka-Tembe, desde que foi comunicada que irá estudar de noite, tem estado a fazer as contas a vida e já pensa em desistir de estudar por medo de percorrer mais de quatro quilómetros a pé a caminho da escola.

“Fiquei chocada quando tive a informação de que devo estudar de noite. Eu vivo a cerca de quatro quilómetros da escola e o meu bairro ainda não está urbanizado, por isso tenho medo de ser violada. Há alguns anos, minha irmã abandonou a escola e migrou para África do Sul para trabalhar, depois de escapar a uma tentativa de violação quando voltava da escola”, relatou a menor que vem de uma família pobre e que foi a primeira dos 10 irmãos a chegar a 10ª classe.

Ancha Cossa (nome fictício), de 17 anos, é outra estudante da mesma escola que, na transição da 11ª para a 12ª classe, se viu transferida do curso diurno para o nocturno. Fez todo o ensino desde a 8ª a 11ª classe de dia e diz até hoje não compreender o que mudou para que passasse a estudar a noite.

“É incompreensível que alguém que estudava de dia, hoje seja obrigado a estudar de noite. Eu vivo no bairro de Nguide, a cerca de cinco quilómetros da escola e não sei como farei para continuar os estudos. Tenho medo de um dia ser violada pelo caminho. Não acho justo que nos obriguem a estudar a noite. A 7ª devia ter continuado no ensino primário, porque aqui sempre houve problemas de vagas”, desabafou.

Quem também está a fazer as contas entre desistir ou continuar a perseguir o seu sonho de ser engenheira civil é Tatiana Miguel, de 15 anos de idade, que vai, no presente ano lectivo, experimentar uma nova realidade, ou seja, frequentar a oitava classe no curso nocturno. Miguel até tentou abandonar os estudos, mas preferiu se sacrificar em prol dos seus sonhos.

“Ninguém gostaria de estar no curso nocturno. Este será o meu primeiro ano numa escola secundária e gostaria que fosse no curso diurno, mas, infelizmente, estarei no curso nocturno. Pensei em desistir, porque a directora disse que já não tinha vagas no curso diurno, mas percebi que ainda tenho muitos sonhos por realizar. Neste ano, o curso nocturno será frequentado por crianças. Os nossos dirigentes não pensaram no bem das crianças quando introduziram as suas inovações”, atirou a pequena.

Cresce desconfiança de venda de vagas

A escassez de vagas para o curso diurno despertou, mais uma vez, escândalos de corrupção. Na Escola Secundária da KaTembe, há denúncias de alunos mais velhos que tiveram vagas no curso diurno, enquanto crianças são empurradas para a incerteza da noite. A comunidade estudantil acusa os membros da direcção pedagógica de estarem envolvidos em negociatas.

“Há pais e encarregados de educação cujos nomes dos filhos tinham saído no curso nocturno, mas do nada passaram para o curso diurno. Percebemos que no nosso País o dinheiro fala mais alto, mas não é assim que as coisas deviam acontecer.  Quando pedimos vagas, a direcção da escola diz que já não existem, mas quando chegam os que tem capacidade de pagar pela vaga a resposta tem sido outra”, denunciou Aníbal Malate, um aluno que também não compreende a razão de ser obrigado a estudar de noite sem ter chumbado.

Já Celeste Manjate, encarregada de educação e residente no Distrito Municipal da KaTembe, viu a sua filha da 9ª classe, com 15 anos, a passar do curso diurno para o curso nocturno no presente ano.

Inconformada, contactou a escola na esperança de conseguir reverter a situação. Alimentava ainda a expectativa de encontrar uma vaga no curso diurno para a sua educanda, uma vez que a mesma vive longe, mas, debalde. As suas aspirações foram por água abaixo.

“Nos outros anos não era necessário estar aqui para implorar por uma vaga. Hoje, os pais e encarregados de educação navegam no mar da incerteza devido a inovação colocada em prática pelo Ministério da Educação. Estão a dizer que a minha filha de 15 anos deve passar para o curso nocturno. Não consigo entender o que está acontecer, porque se trata de uma criança”, explicou Manjate, para depois criticar as reformas levadas a cabo pelo Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano.

“As reformas sempre são bem-vindas se forem para facilitar a nossa vida, mas esta não sei a quem vai beneficiar. O Governo deve deixar de inventar e apostar em reformas verdadeiras para melhorar a nossa educação. Entre a década 90 e 2000, tínhamos um ensino de qualidade, mas agora só ficaram as lembranças do passado porque os nossos governantes têm outras agendas”, desabafou.

Direcção da Escola reconhece distúrbios criados pela 7ª classe

Reagindo às acusações dos pais e encarregados de educação, a direcção da Escola Secundária da KaTembe reconheceu a falta de vagas em virtude da transferência da 7ª classe para o ensino secundário, mas jurou de pés juntos que nenhuma criança estará no curso nocturno enquanto tem idade para estar no diurno. No entanto, entra em contradição muitas vezes quando assume que há crianças de 16 anos que vai mandar para estudarem a noite.

“Neste ano, a 7ª classe passou para o ensino secundário e algumas coisas mudaram. Contudo, garantimos que nenhuma criança estará no curso nocturno enquanto tem idade para estar no diurno. No passado, tínhamos alunos de 18 anos a frequentarem a 8ª classe no curso diurno, mas agora não há como ficarem no curso diurno. Na 8ª classe, os alunos com 16 anos estarão igualmente no curso nocturno. Não posso permitir que um aluno de 18 anos esteja na mesma sala com outro de 12 anos”, declarou Natália de Conceição Gueche, directora da Escola Secundária da KaTembe.

Gueche reconheceu que, à semelhança das outras escolas da capital moçambicana, a escola por si dirigida não tem vagas, tendo referido que os pais e encarregados de educação ficaram presos no modelo anterior e que a situação da venda de vagas não corresponde à verdade.

“Dizer que vendemos vagas não corresponde à verdade.  Quem me conhece sabe que isso é uma grande mentira. Os pedidos de vagas são submetidos na direcção distrital e nós recebemos as pessoas que foram apuradas para fazer a matrícula”, salientou.

Nas entrelinhas, Natália da Conceição Gueche aponta o ensino a distância como uma das opções para os alunos que não estiverem dispostos e/ou em condições de estudar a noite.

“Ninguém vai ficar de fora, porque alargamos o período das matrículas até dia 10 de Fevereiro a pedido dos pais e encarregados de educação. Estamos a fazer o nosso máximo para que todas as crianças tenham acesso ao ensino”, sublinhou.

Contactado pelo Evidências, há mais de duas semanas, para prestar esclarecimentos sobre o imbróglio criado pela nova lei do Sistema Nacional de Educação, o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano prometeu retonar-nos para marcar a entrevista, mas até o fecho da presente edição não havia mostrado disponibilidade.

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