Deficiente canalização de 20% empobrece comunidades em Cheringoma

DESTAQUE SOCIEDADE
  • Dados indicam que, em dois anos, cada membro da comunidade recebeu apenas 45 meticais
  • Baixos valores dos 20% influenciam o investimento em infra-estruturas comunitárias
  • Número dos operadores florestais em Sofala reduziu de 90, em 2019, para 16, em 2023
  • Mais de 10 operadores florestais foram penalizados devido à falta de plano de maneio para o reflorestamento das áreas de corte e o abate de árvores

 

Ao abrigo do quadro jurídico legal sobre as florestas, iniciou, em 2005, a implementação da obrigação de canalização de 20% das taxas de exploração florestal e faunística para as comunidades locais das áreas de exploração dos recursos naturais. Contudo, 18 anos depois da implementação desta legislação, os resultados são incipientes para o desenvolvimento das comunidades. O distrito de Cheringoma, na província de Sofala, é por si um retrato da incipiência do valor e do mau uso. De 2020 e 2021, as comunidades receberam um valor total de 2.924.266 meticais da taxa de 20% de exploração florestal e faunística, que quando cruzados com a projecção populacional pode se concluir que cada membro da comunidade recebeu, em dois anos, menos de 45 meticais do valor canalizado pelos madeireiros.

Reginaldo Mangue *

Em 2002 foi aprovado por Decreto 12/2002 o regulamento da lei de Florestas e fauna bravia, cujo artigo 102 estipula que    vinte por cento de qualquer taxa de exploração florestal e faunística destina-se ao benefício das comunidades locais da área onde foram extraídos os recursos, nos termos do n.º 5 do artigo 35 da Lei n,” 10/99. de 7 de Julho, o distrito de Cheringoma que faz parte da zona tampão do Parque Nacional de Gorongosa (PNG), tem 10 operadores florestais, contudo as comunidades locais queixam-se da falta de canalização da taxa de exploração florestal.

O distrito de Cheringoma, na província de Sofala, enfrenta níveis elevados de pobreza e deficiente acesso de serviços sociais. Um estudo realizado em 2004 para as concessões florestais indica que a partilha equitativa pelos habitantes varia de 0,5USD/pessoa/ano a 3 USD/pessoa/ano, (Enosse, 2004); ou seja, “os baixos valores dos 20% influenciam o seu investimento em infra-estruturas comunitárias (escolas, poços e ou furos de água, posto de saúde, entre outras), revelando a grande carência dos mesmos nas zonas rurais e a inabilidade do sector estatal em fornecer estes serviços”.

Membros da comunidade acusam o Parque Nacional de Gorongosa (PNG) de estar a empobrecer cada vez mais o distrito, uma vez que as empresas que detinham licenças florestais naquela área canalizavam a taxa de 20% e, consequentemente, ajudavam na melhoria das condições de vida das comunidades locais.

“Tinhamos moageira, comprávamos meios circulantes e uniforme para os nossos fiscais comunitários. Mas hoje em dia não se canaliza nada aos Comité de Gestão de Recursos Naturais (CGRN) e estamos a enfrentar dificuldades de reposição ou manutenção dos meios adquiridos,” queixou-se Régulo Chidanga, que lamentou que o CGRN de Chidanga não recebe os valores provenientes da canalização da taxa de 20% há mais de cinco anos, desde que PNG substituiu as empresas madeireiras.

Para Régulo, a chegada do PNG em Chidanga, no ano de 2018, não trouxe benefícios tangíveis aos membros da sua comunidade, uma vez que restringe a população de cortar estacas, capim e extrair fibra da casca das árvores para construção habitacional.  “O parque diz que qualquer pessoa que quiser usar esses recursos deve ser acompanhado por um fiscal, para que não se faça caça furtiva, e é complicado seguir esses procedimentos, tendo em conta as distâncias que temos de percorrer para encontrar um fiscal”.

Joana António, fiscal comunitário do CGRN de Chidanga, reclama das grandes distâncias que tem de percorrer para extrair lenha para confeccionar os seus alimentos. “Os fiscais do parque, muitas vezes, indicam áreas distantes de onde vivemos para tirar lenha e também proíbem nossos maridos de fazer caça e vender a carne”.

A Lei de florestas permite às comunidades em áreas de uso múltiplo caçarem para a sua subsistência e autoconsumo. E estipula que a utilização comercial da fauna bravia pode ser praticada em modelo de parceria entre comunidade e o sector privado, onde as comunidades são agentes de fiscalização e o privado responsabiliza-se em criar parcerias de geração de rendimento (caça sinergética, caça desportiva, safari) e os benefícios são compartilhados perante um acordo pré-estabelecido. Contudo, neste momento, as comunidades de Chidanga, Maciamboza e Mazamba estão impedidas de praticar a caça.

“A partir do ano em que a gestão da Coutada 12 (local proibido para a caça) passou para PNG, a actividade de caça foi cancelada, alegadamente porque a sua vocação é apenas a conservação, e ficamos sem uma geração de renda”, lamentou Lázaro Fombe, membro do CGRN de Guma. Nesta região, as áreas para o cultivo estão na zona tampão do PNG, que por ser uma instituição de conservação não admite caça, nem mesmo para reduzir a população de animais que vandaliza as machambas das comunidades locais.

O secretário do Comité de Gestão de Recursos Naturais de Guma, Eduardo Caitano, mostrou-se agastado com a empresa de exploração florestal TCT Dallman, que alega não reconhecer uma área do território de Guma que explora como sendo pertença desse regulado, e por conta disso o comité não recebe os valores da taxa de 20% há três anos. “Estamos mais pobres porque a floresta já não é nossa, e não recebemos nada em troca”, desabafou Eduardo, que explicou que a comunidade enfrenta um grande calcanhar de Aquiles para provar que a TCT Dallman realiza actividades no seu território. “Não possuímos um mapa que indica as delimitações territoriais”, disse.

Direcção Nacional de Florestas admite que o valor é insignificante

A Direcção Nacional de Florestas (DINAF) assume, no seu documento intitulado Maneio Comunitário dos Recursos Florestais (2025), que cerca de 47% das taxas de licenciamento florestal ( 2011-2017) não foram devolvidas às comunidades, revelando um processo moroso, complicado, pouco eficiente e inadequado à realidade local.

DINAF admite que o valor dos 20%, quando confrontado com o número de pessoas beneficiárias nas comunidades, “torna-se insignificante e pouco atractivo na mitigação da pobreza e melhoria do rendimento familiar”.

Inês Branco, membro do CGRN de Guma, não tem dúvidas que a concessão florestal ao PNG contribuiu para a degradação das condições de vida da sua comunidade. “Enfrentamos todo o tipo de carências, não temos nesta comunidade nenhuma fonte de água segura que possa fornecer água o ano todo”.

A nossa equipa de reportagem enviou um email ao Parque Nacional de Gorongosa visando obter alguns esclarecimentos, contudo, quase um mês depois, não obteve resposta.

Ângelo Jone, director do Serviço Distrital de Actividades Económicas (SDAE) de Cheringoma, entende que há um diálogo saudável entre os comités, Governo e empresas de exploração florestal. Contudo, assinalou que existem CGRNs que não recebem os 20%.

Por exemplo, “a Coutada 12 ainda não está legalmente nas mãos do Parque. Neste momento decorrem trâmites para a sua legalização”, referiu, para depois acrescentar que a Coutada 12, em princípio, será apenas para área de conservação, o que implica que os dois operadores florestais, nomeadamente Indústrias de Madeira de Moçambique e Loof construções, passam para o PNG e deixam de ser operadores madeireiros. Apesar de assumir que em Guma e outros locais há falta de canalização, Jone vincou que, de um modo geral, o processo de canalização em Cheringoma decorre sem sobressaltos, mas lamentou a falta de transparência e democracia em alguns CGRNs: “Há líderes dos comités que estão no posto há mais de 20 anos. Os líderes locais compram bens para eles próprios, isso tem de mudar”, apelou.

Dados dos SDAE indicam que o distrito recebeu, em 2020, 1.527.750 meticais, dos quais 65.000 meticais para Cherimazi, 65.000 meticais Matondo, 583.250 meticais Tsotse, 30.000 meticais Catemo e 784.500 meticais para Maciamboza, e em 2021 o valor desceu para 1.396.516 meticais, dos quais 22.000 meticais para Cherimazi, 100.500  meticais para Matondo.

Há espécies florestais em extinção em Sofala

O chefe do Departamento de Florestas e Plantações Agro-florestais em Sofala, Paz Martinho, disse que a reforma da lei florestal é de extrema importância, se tivermos em consideração que a mesma, que é usada desde 1999, apresenta-se desajustada com a realidade. “A nova legislação podia trazer mudanças positivas”. Martinho fez saber que a tendência de licenciamento na actividade florestal em Sofala é de decrescer.

“Se formos a fazer uma comparação dos dois últimos anos, veremos que no ano passado a província tinha 16 licenças florestais, entre simples e concessões. Mas, em 2023 temos, neste momento, apenas três licenças de concessão florestal”.

Segundo o dirigente, o último inventário nacional de florestas ditou que na província de Sofala já há escassez de algumas espécies florestais, em termos de diâmetro comercial, porque “cada espécie tem o seu diâmetro comercial, e não havendo diâmetro comercial para o seu abate não podemos conceder licenças”.

A espécie florestal em vias de extinção em Sofala é Monzo. “Em 2023 temos 200 metros cúbicos do volume do corte admissível para a espécie de Monzo, quando há cinco anos tínhamos um volume de 1200 metros cúbicos”. Paz Martinho sublinhou ainda que existem outras espécies florestais em vias de extinção, tal como a Chanfuta e Umbila, devendo, por isso, serem protegidas.

Para já, 13 operadores florestais foram penalizados devido à falta de plano de maneio para o reflorestamento das áreas de corte e o abate de árvores com diâmetros abaixo do estabelecido. Antes do ciclone Idai, em 2019, a província de Sofala contava com cerca de 90 operadores florestais”, um número que baixou para 16.

Legislação florestal burocratizada penaliza comunidades

A legislação florestal estabelece que os valores destinados às comunidades são depositados na conta dos Serviços Provinciais do Ambiente e os CGRN devem ter contas cadastradas no e-SISTAFE, que passou a gerir os mesmos fundos destinados às comunidades. De igual modo, cada comité de gestão é obrigado a proceder à abertura de uma conta bancária em nome da respectiva comunidade local, para o depósito e movimentação dos fundos, cujo número e banco são comunicados à entidade licenciadora, nesse caso os Serviços Provinciais de Ambiente.

Olinda Cuna, coordenadora de programas na Livaningo, uma ONG ambiental, refere que, olhando a realidade dos factos, o sistema e-SISTAFE, pela sua burocracia, exclui as comunidades locais da beneficiação pela exploração dos recursos naturais, porque muitas comunidades não têm condições de, por si só, estarem organizadas e com contas bancárias activas, e isso coloca-as num estado de dependência da entidade licenciadora, sociedade civil ou outros actores que possam apoiá-las até estarem devidamente legalizadas, e isso tem sido um processo moroso, tendo em conta a burocracia imposta pelo governo.

“Ora vejamos, os procedimentos de gestão e canalização dos 20% continuam não sendo claros e transparentes, não existem directrizes que orientam como funciona cada etapa do processo e em cada província o processo acontece de forma “arcaica”.

A activista ambiental defende que as exigências requeridas para que os comités recebam os 20% são muito complexas, pois, pela realidade das comunidades rurais, muitos podem ter os documentos de identificação, mas não possuem NUIT para a abertura da conta bancária, não obstante para o processo de legalização, publicação dos estatutos no Boletim da República, requer custos que as comunidades rurais não têm, custos esses referente a deslocação dos membros do comité até a cidade mais próxima e ainda requer recursos financeiros para pagar pela publicação no Boletim da República que está acima de 10.000 meticais.

Uma publicação da Biofund, intitulada “20 Passos para a Sustentabilidade Florestal em Moçambique” dos autores: Benilde Mourana e Carlos Manuel Serra, dá conta que uma das principais ilações extraídas da leitura do quadro legal sobre florestas é o facto de esta ser excessivamente centrada no uso e ou exploração dos recursos florestais, descurando-se a componente conservação. Isto é, realça à vista que o grande objectivo foi fixar as regras básicas do licenciamento da actividade florestal, através da definição e regulação dos regimes de licença simples e concessão florestal, relegando-se para segundo plano aspectos que versassem sobre protecção da floresta, reservas florestais, repovoamento, sustentabilidade florestal, entre outros componentes essenciais. “Esta constatação é ainda mais evidente da leitura que se faz do RLFFB, fazendo notar que os interesses económicos falaram mais alto no processo de construção do novo quadro jurídico-legal sobre florestas”.

* Reportagem produzida no âmbito do Programa para Fortalecimento do Jornalismo Investigativo, com enfoque na Gestão dos Recursos Naturais e Governança Económica – REAJIR.

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