Tende a crescer o número de pacientes que são abandonados pelas famílias nos hospitais

SAÚDE SOCIEDADE
  • Quando o hospital vira lar para os que foram rejeitados pelas famílias
  • Hospital Psiquiátrico de Infulene lidera estatísticas dos pacientes rejeitados
  • Famílias ocultam dados para não receberem os pacientes após a alta
  • Há registos de pacientes que perdem a vida e são depositados na vala comum
  • Até crianças recém-nascidas costumam a ser abandonadas nos hospitais

São vítimas da indiferença das próprias famílias. Saíram das suas residências para o hospital com a esperança de voltarem ao convívio familiar livres das enfermidades que os apoquentavam, mas, debalde, não sabiam que jamais voltariam ao ponto de partida. Alguns chegaram a perder a vida e ninguém veio reclamar os corpos, e por isso foram despejados na vala comum. Não existem estatísticas fiáveis, mas o número de pacientes rejeitados que fazem das enfermarias os seus quartos e dos hospitais a sua residência é considerável, o que já começa a constituir preocupação para as autoridades. Mas, engane-se quem pensa que o fenómeno do abandono de pacientes apenas fustigava os adultos, uma vez que a rejeição também afecta recém-nascidos. O grosso dos hospitais da Cidade de Maputo tem registo de casos de abandono, contudo o Hospital Psiquiátrico de Infulene é que tem maior número de casos.

Duarte Sitoe

O amor ao próximo tornou-se banal, na medida que pessoas estão a ser desamparadas pelos familiares nos hospitais. É um fenómeno que tende a crescer nos últimos anos. Os pacientes são levados aos hospitais com a esperança de saírem de lá com os seus problemas de saúde resolvidos, mas mesmo depois de receberem altas são obrigados a continuar nos hospitais porque as famílias lhes viraram as costas.

Para alguns, a rejeição inicia com admissão nas unidades sanitárias, visto que depois de serem “depositados” nas enfermarias nunca mais viram os rostos dos familiares.

De acordo com dados recolhidos pelo Evidências nas unidades sanitárias que mostraram abertura para partilhar o número dos pacientes que foram abandonados nos últimos anos, perto de 200 pessoas foram abandonadas nos hospitais, só nas Cidades de Maputo e Matola.

O Hospital Psiquiátrico de Infulene, localizado na Província de Maputo, lidera as estatísticas dos doentes que foram à unidade sanitária em busca de cura, mas acabaram fazendo da mesma sua residência.

Actualmente, segundo a direcção, aquela unidade sanitária especializada no tratamento de doenças mentais ou transtornos mentais (termo médico-especializado) conta com 78 pacientes curados, que fazem do hospital a sua morada em virtude de terem sido renunciados pelas suas famílias.

Em conversa com o Evidências, um jovem que se identificou pelo nome de Egas Augusto, que entrou no Hospital Psiquiátrico de Infulene na qualidade de paciente e acabou virando residente da mesma, contou que por várias vezes aquela unidade sanitária tentou localizar a família com vista a acolhê-lo. Contudo, foi rejeitado.

“Tenho familiares paternos e maternos vivos, mas como no passado tive transtornos mentais não aceitaram que voltasse ao convívio familiar. Os meus pais faleceram, por isso tive que voltar ao hospital. Eles pensam que ainda sou ‘maluco’. Infelizmente, na nossa sociedade, poucas pessoas aceitam viver com pessoas que têm problemas mentais. Tive amigos que estiveram internados aqui e foram reintegrados. É triste ser rejeitado pelos familiares. Não sei o que seria de mim sem a ajuda do hospital”, contou Augusto.

“Arrumaram minhas coisas e me deixaram na porta do hospital”

Há famílias que até aceitam receber pacientes, mas, contra todas as expectativas, em seguida abandonam os mesmos nas imediações do Hospital. A título de exemplo, Mandinho revelou que foi levado aos seus familiares pelos técnicos da acção social do Hospital Psiquiátrico, mas, tal como acontecia quando estava internado, foi abandonado.

“Fui levado para a casa dos meus tios. Pensava que eles aceitavam viver comigo, mas no dia seguinte disseram que tinha que voltar ao hospital porque não estava melhor. Arrumaram minhas coisas e me deixaram na porta do hospital. Infelizmente, tive que continuar aqui porque fui rejeitado pelos meus familiares”, relata.

Em representação da direcção do Hospital Psiquiátrico de Infulene, Argentina Jamisse declarou que os familiares abandonam os pacientes porque não querem assumir qualquer encargo, adiantado que o grosso justifica que não pode ficar com os pacientes porque não dispõe de condições para o efeito.

“Tivemos casos de famílias que disseram que não tinham condições e eram famílias do terceiro grau. São órfãos de pais. Temos 31 doentes sem dados, são os que foram recolhidos na rua. Eles não sabem onde se localizam as casas das famílias, outros vêm do infantário Primeiro de Maio e eles não têm nenhum dado que nos possa levar as suas famílias”, referiu, para posteriormente referir que algumas famílias abandonam os pacientes por uma mera questão de vergonha.

“Em alguns casos é a vergonha que faz com os doentes sejam abandonados. Um doente mental faz estragos e quando trazem ao hospital estão a se livrar dele. Infelizmente, na maioria dos casos, os pais já não estão vivos ou estão separados”, relata.

Famílias ocultam dados para não serem localizadas

Logo que dão entrada, o Hospital Psiquiátrico de Infulene pauta pela recolha de dados para posteriormente localizar as famílias no sentido de receberem os seus íntimos. No entanto, no grosso das vezes tem sido uma maratona que só tem ponto de partida, visto que nem sempre se consegue chegar a meta.

“Tivemos um paciente que vivia com os pais na África do Sul, mas os mesmos perderam a vida e foi deportado para Moçambique. Ficou internado no Hospital Central de Maputo e posteriormente transferido para este hospital. Durante a recolha de dados disse que era de Inhambane. Encontramos alguém que nos ajudou a localizar a família do terceiro grau, mas acabamos voltando com o paciente porque as condições não eram favoráveis”, revela, acrescentando que a permanência dos mesmos, para além do tempo de tratamento, acarreta enormes custos logísticos para o hospital.

A fonte referiu que há famílias que entregam dados falsos para se livrar dos pacientes.

“Temos uma situação de um paciente que os pais estão separados. Inicialmente, vivia na casa da mãe, mas o padrasto não gosta dele e não o quer. O paciente fugiu de casa, tentamos localizar o pai. Fomos até ele, reconheceu que é o filho e não o podia receber porque a madrasta não ia cuidar dele. Por outro lado, há famílias que fornecem dados falsos. Se estiverem numa casa de aluguer logo que deixam o paciente mudam de residência para não serem localizados”.

Há alguns casos de sucesso

Contudo, apesar das inúmeras derrotas na tentativa de localizar as origens, tem casos de sucesso. Do ano passado a esta parte, aquela unidade sanitária tem cinco casos de sucesso e destaca o caso de uma mulher que voltou ao convívio familiar depois de 30 anos.

“Tivemos um caso de sucesso, que era da província de Inhambane, casou-se com alguém natural de Manica, mas quando ficou doente desapareceu de casa e foi parar em Moamba onde posteriormente seria transferida para esta unidade sanitária. Quando deu entrada, a acção social começou a recolher os dados, e sempre falava que os pais eram de Mambone. Não desistimos, esgotamos todas as tentativas. Fizemos novas entrevistas e disse que tinha filhos em Machaze. Tiramos fotos e mandamos para Machaze. Felizmente conseguimos localizar e ela voltou ao convívio familiar depois de 30 anos. Foi bem acolhida e a família emocionou-se porque pensavam que já estava morta”.

HCM, José Macamo e Hospital Provincial no rol dos hospitais com doentes abandonados

De acordo com dados partilhados pela direcção do Hospital Provincial da Matola, nos primeiros seis meses do ano em curso, 16 pacientes foram abandonados à sua própria sorte pelos familiares, sendo que três dos mesmos acabaram perdendo a vida enquanto aguardavam pelo regresso ao convívio familiar. Os três corpos não foram reclamados, e por isso acabaram depositados na Vala Comum.

No que aos números do ano passado diz respeito, a maior unidade sanitária da Província de Maputo registou 13 casos de abandono, sendo que cinco dos quais eram bebês que foram encaminhados aos centros de acolhimento.

Na Cidade de Maputo, concretamente no Hospital Geral de Mavalane, em 2022, foram abandonados 22 pacientes, dos quais dois bebês.

O Hospital Geral José Macamo (HGJM) revelou, por sua vez, que desde o ano passado cinco pacientes foram abandonados pelas famílias. Naquela unidade sanitária há pacientes que estão há mais de um ano sem receber visitas.

Alfredo Jaime, de 42 anos de idade, por sinal pai de quatro filhos, está internado no Hospital Geral José Macamo desde Novembro de 2022, mas de lá a esta parte nunca foi visitado pelos familiares e amigos. Actualmente, só visitas efectuadas pelas congregações religiosas servem de consolo para Jaime.

“Nunca pensei que os meus familiares iam me virar as costas. Foram eles que me trouxeram aqui, mas nunca vieram me visitar. Até hoje não entendo os porquês de terem me rejeitado só pelo facto de estar gravemente doente. Não acredito que vão me querer depois de morto porque me abandonaram a minha própria sorte ainda em vida. Não guardo mágoas, espero que eles sejam felizes”, desabafou.

MGCAS preocupada com o fenómeno

Ainda no Hospital Geral José Macamo, há relato de um paciente que foi abandonado que os familiares só vieram “recolher” o corpo para as cerimónias fúnebres porque foram contactados pela Direcção da Acção Social (DAS).

De acordo com a DAS do HGJM, três dos cinco pacientes abandonados foram reintegrados no convívio familiar, sendo dois no ano passado e um no presente ano, nos bairros de Infulene, T-3 e Jardim.

Se por um lado, a maior unidade sanitária do país, ou seja, o Hospital Central de Maputo, mesmo sem revelar números, reconheceu que há doentes abandonados, tendo, através da responsável da Direcção de Acção Social, referido que o grosso dos casos dos doentes são de pacientes que foram recolhidos nas ruas e outros que são transferidos das províncias.

Por outro, o Hospital Central da Beira revelou que nos últimos três anos foram registados 48 casos de pacientes abandonados, dos quais 18 em 2021, 25 em 2022 e cinco no primeiro trimestre deste ano. Aquela unidade sanitária da província de Sofala aponta que das 48 vítimas, sete acabaram perdendo a vida e os restantes 39 foram levados para os infantários e apenas um regressou ao convívio familiar.

Refira-se que o Ministério de Gênero, Criança e Acção Social, através da responsável da Repartição da Intervenção Comunitária, Pércia Raso, mostrou-se preocupado com o aumento dos pacientes abandonados nos hospitais, apontando que a gestão desses pacientes é da inteira responsabilidade da Acção Social nas unidades sanitárias que é tutelada pelo Ministério da Saúde.

Raso declarou que o MGCAS tem dado a mão nos trabalhos de reintegração nas famílias, mas sempre em sintonia com a acção social dos hospitais.

“Se for criança deixa-se no infantário. Se for idoso deixa-se no centro de apoio à velhice, enquanto se faz o trâmite para ver se tem família ou não. A primeira instância tem de ser a acção social hospitalar porque encontra-se dentro da unidade sanitária. Trabalhamos em coordenação, há casos que muitas vezes mandam para nós. Todo mundo tem família e as famílias devem assumir as suas responsabilidades porque o Governo está para fazer a sua parte, mas a primeira instância é a família”, concluiu.

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