No dia em que não se precisou da escuridão da noite para roubar e assassinar a democracia

DESTAQUE POLÍTICA
  • Pode ter sido a pior fraude de todos os tempos

Circulação paralela de boletins de voto com os quais cidadãos eleitores já chegavam às mesas, cidadãos surpreendidos tentando votar múltiplas vezes ou com vários cartões de eleitores, relatos de enchimento, apagões de energia bem na hora de contagem de votos, bloqueio das comunicações por WhatsApp, episódios de violência, recurso abusivo ao voto especial por parte de observadores que residem fora das autarquias, urnas carregadas em carros da polícia para serem contadas em parte incerta,  recusa dos Membros de Mesa de Voto (MMVs) em assinar actas e editais antes de uma suposta ordem, sumiço misterioso de editais e nalguns casos recusa de colá-los em local visível, milhares de urnas pré-votados a ponto de nalguns locais os números de votos superarem o dos eleitores inscritos, entres outras irregularidades, mancharam sobremaneira o processo eleitoral do passado dia 11 de Outubro, que já são tidas nalguns círculos como as mais fraudulentas de sempre. Não obstante as irregularidades relatadas, os resultados em si são um outro escândalo, com a Frelimo de forma improvável a ser declarada vencedora em 64 das 65 autarquias, facto que elevou o nível de contestação, com a Renamo a reclamar vitória em pelo menos 17 autarquias do país, dentre as quais Maputo, Matola, Quelimane e Nampula, onde neste momento vive-se um ambiente de grande tensão.

 

Cerca de metade dos 8. 877.929 eleitores das 65 autarquias do país foram às urnas no passado dia 11 de Outubro para eleger os seus representantes, contudo o que era para ser uma festa acabou se transformando em mais uma crise pós-eleitoral em face dos resultados que estão a ser contestados, com suspeitas de fraudes devido a inúmeras irregularidades reportadas durante e depois do processo.

Sem que ninguém consiga até agora esclarecer, voltou a registar-se nestas eleições (depois do que aconteceu antes em 2019) a circulação de boletins clandestinos e urnas pré-votadas. Nas zonas Centro e Norte, muitos foram os cidadãos que tentaram encher urnas com dezenas de boletins de votos previamente preenchidos, que traziam de casa, para ajudar os seus partidos a vencer as eleições. O grosso dos indivíduos flagrados são membros do partido no poder.

Na apelidada capital da zona norte, a Polícia da República de Moçambique (PRM) deteve um suposto agente da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) na posse de boletins já preenchidos na Escola Comunitária 01 de Janeiro, na cidade de Nampula.

De acordo com os observadores, os boletins já preenchidos visavam beneficiar o partido Frelimo, e o referido agente da UIR esteve perto de ser linchado e foi salvo pelos agentes da PRM que estavam na Escola Comunitária 01 de Janeiro.

O suposto agente daquela unidade da Polícia da República Moçambique foi levado por uma mini-bus por agentes da Polícia de Protecção para evitar males maiores, mas, quando contactado pelo Evidências, o Comando Provincial da PRM em Nampula disse não ter informações sobre o agente que escapou da fúria popular.

Refira-se que desde a noite anterior à votação já vinha sendo reportada a circulação de Boletins de Voto fora do circuito normal, tendo sido expostos, em Nampula, supostos canhotos de boletins já arrancados supostamente pré-votados.

Para além do suposto agente da Unidade da Intervenção Rápida, a Polícia da República neutralizou mais duas pessoas indiciadas de ilícitos eleitorais na Cidade de Nampula.  Trata-se de dois delegados da Renamo. Um foi detido na posse de dois cartões de eleitor e outro invadiu a cabine de votação alegando que um eleitor estava a demorar a exercer o seu direito de voto.

Urnas “pré-enchidas” e eleitores flagrados com dezenas de boletins de votos

Na Cidade de Quelimane, Zambézia, concretamente na mesa 05 da Escola Primária Completa Sinacura, uma jovem foi flagrada com três boletins pré-votados, enquanto outra, por sinal secretária da OMM a nível local, foi encontrada com onze boletins de voto que trazia consigo de parte incerta.

As duas cidadãs com votos pré-marcados a favor do partido Frelimo foram neutralizadas e encaminhadas para a 1ª esquadra da Cidade de Quelimane, onde foram ouvidas para apurar a proveniência dos boletins de voto e possivelmente desarticular o circuito clandestino que está por detrás da acção.

Segundo apurou o Evidências, uma das infractoras responde pelo nome de Telma Taula, docente da UCM-Quelimane. Ao todo, foram três os detidos na posse de boletins de voto de origem duvidosa,

Já em Guruè, onde o partido Nova Democracia era apontado como favorito, pelo menos pelo que se viu durante a campanha, houve também relatos de cidadãos flagrados com dezenas de boletins pré-votados a favor do partido Frelimo, numa autarquia em que nas eleições passadas houve relatos de fraude.

Para além de boletins pré-votados, houve também relatos de urnas encontradas já cheias nas mãos dos brigadistas antes da abertura da votação, o que originou uma revolta popular. Os boletins estavam marcados a favor da Frelimo e a polícia interveio com violência, não se sabendo ao certo qual é o destino dado a aquelas urnas.

Enquanto isso, em Manica, na Escola Básica de Sanhathunze, na vila de Catandica, foi surpreendido um delegado da Frelimo com três boletins de votos para favorecer o partido no poder, segundo relatou o Bolentim Eleitoral do CIP.

Na Cidade da Beira, uma mulher foi detida por ter sido flagrada com boletim de voto já preenchido, enquanto aguardava a sua vez para exercer o seu direito de voto.

Por sua vez, um cidadão que responde pelo nome de Augusto Gaspar Sozinho, por sinal director da Escola Primária da Chota, foi flagrado a entregar quatro eleitores a um eleitor com intuito de favorecer a Frelimo, sendo seguidamente detido pela Polícia da República de Moçambique.

O facto foi denunciado pelo delegado do Movimento Democrático de Moçambique (MDM), sendo que a mesa na qual o director da Escola Primária da Chota era presidente ficou encerrada durante uma hora.

Para o espanto de todos que estavam no local, mesmo depois de ter sido provado que o director da Escola Primária da Chota cometeu um ilícito eleitoral foi restituído à liberdade e continuou a presidir a mesa na assembleia de voto n°050062-04.

Atrasos no arranque da votação e proibições absurdas

A Comissão Nacional de Eleições (CNE) garantiu que estavam criadas todas as condições para a votação arrancar às 7 Horas em todo o território nacional. No entanto, nem todas as mesas abriram a hora anunciada.

Na Cidade da Beira, por exemplo, alguns observadores do processo relataram atraso na abertura das urnas, o que originou alguma confusão. A título de exemplo, na Escola Secundária da Ponta Gea, a população decidiu derrubar o portão devido à morosidade, enquanto em Manza e Inhamizua até às 09 horas as assembleias não tinham mesas de voto e nem cabines instaladas.

E quando se pensava que já se havia visto tudo, eis que Membros de Mesa de Voto afectos à Escolinha Hassan Impura, no bairro de Magoanine A, arredores da cidade de Maputo, decidiram inovar e proibiram dezenas de eleitores de votar, alegadamente porque não podiam exercer o seu direito de voto de calções.

O facto pegou de surpresa muitos eleitores, sobretudo homens, que, por se tratar de um dia com tolerância de ponto, apresentaram-se no posto de votação de forma informal e descontraída.

“Nós desconfiamos desta informação porque ninguém apareceu nas telas ou na rádio a informar que as pessoas deviam vir para aqui vestidas a rigor, e foi o meu caso, eu vim de calções e queria exercer o meu dever cívico. Por ser cidadão e queria exercer o meu dever accionei o meu filho e ele me trouxe facto de treino. É constrangedor, porém já está feito”, relatou Manuel Macuacua, visivelmente agastado pelo facto de ter sido obrigado novamente a formar fila.

Um outro eleitor que preferiu não se identificar protestou, referindo que não faz sentido algum essa proibição de eleitores exercerem seu voto simplesmente por estarem trajados de calções.

“Ficamos constrangidos porque chegamos de manhã, ficamos muito tempo na fila para depois voltarmos para casa. Por acaso nunca vi nenhum artigo que fala disso. Que nos informem antes sobre estas proibições. Temos pessoas que estão a vir de pontos distantes para votar, agora imagina se virem se deparar com isso”, denunciou.

STAE deu ordens aos MMV para não assinarem actas e editais onde a Frelimo estava a perder

Quando a noite caiu, assistiu-se a um verdadeiro espetáculo nas 65 autarquias, sobretudo quando as tendências de voto começaram a apontar para uma vitória da Renamo nas principais cidades.

Os Membros das Mesas das Assembleias de Voto (MMV) receberam ordens superiores para não assinarem actas e nem preencherem os editais de apuramento de resultados em Maputo, Matola e outros locais onde a Frelimo estava em desvantagem. Nalguns locais, os editais não chegaram a ser colados e noutros relatou-se sumiço dos mesmos e outro material, tendo sido recuperados depois pela Renamo, quando estavam escondidos no gabinete do director do STAE.

As ordens sem rosto, mas que os MMV dizem ser do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), entram em choque com o estipulado na lei eleitoral que determina fixação dos resultados num espaço visível logo a seguir ao apuramento dos resultados.

O caso foi tão caricato que alguns MMV foram recolhidos na madrugada de quinta-feira, 12 de Outubro, para irem dormir nas suas casas, deixando o material eleitoral à guarda da polícia, o que contraria o que determina a lei. Só hoje pela manhã é que alguns MMV receberam orientações para voltarem às suas Assembleias de Voto para assinarem actas e editais, nalguns casos com números alterados.

Em Maputo, por exemplo, na escola Nova, do bairro Inhagoia A, até às 9 horas de quinta-feira, 12 de Outubro, os MMV ainda não tinham recebido orientações para assinarem as actas e editais. Nesse ponto, além de não poder assinar, foram obrigados a ir para casa sem incluir os dados nos editais.

“Até então, os MMV estão em casa à espera de novas ordens para voltar e encerrar o processo”, disse um dos membros. De acordo com a Lei Eleitoral, os MMV só podem ir para casa depois de entregar ao STAE todo o kit e toda documentação do processo de votação, numa maleta selada.

Além de Maputo, situação idêntica foi verificada na Matola, Nampula e Quelimane, coincidentemente onde a Frelimo estava em desvantagem, ou com uma vitória a marteladas. Aliás, no caso de Quelimane, esta foi uma das razões que levou à detenção de Manuel de Araújo, por ter ido para algumas Assembleias de Voto para exigir a fixação dos editais no espaço público, conforme orienta a lei.

No caso específico da Matola, quando os dados já indicavam uma vitória folgada da Renamo nas mesas de voto, relatou-se circulação de indivíduos estranhos à madrugada nas mesas de voto, chamando os presidentes em privado supostamente com o fim último de manipular as eleições.

Apagão da EDM e bloqueio do WhatsApp na hora de contagem de votos 

Tal como havia acontecido em 2013, a cidade de Maputo voltou a ficar às escuras durante a contagem de votos. O cenário foi mais evidente nos distritos municipais Ka-Mubukwana e Ka-Mavota, os dois maiores círculos eleitorais, considerados determinantes para decidir a eleição.

Com tudo às escuras, foi relatada a circulação de uma brigada que se encarregou de enchimento de urnas e até carros da polícia são associados a esta prática. Só depois do apagão, já pela madrugada, é que os membros da Frelimo começaram a alegar vitória no escrutínio. Embora os órgãos eleitorais tenham atribuído vitória à Frelimo, a Renamo e o MDM dizem que a contagem paralela atribui vitória à perdiz.

Coincidentemente na hora da contagem dos votos, verificou-se restrições no funcionamento do aplicativo WhatsApp, uma das redes sociais mais concorridas para partilha pontual de incidentes e ocorrências que podem indiciar fraude. O blackout desta rede iniciou, coincidentemente, 20 minutos depois do início da contagem de votos nalguns postos de votação que terminaram a votação exatamente na hora prevista, 18 horas.

O WhatsApp tem sido usado, de forma exclusiva, pelos observadores e jornalistas espalhados em diversos pontos do país. Esta plataforma é, igualmente, usada pelas fontes para denúncias sensíveis, numa sociedade onde há uma certeza enraizada de que as chamadas na linha aberta não são seguras.

Jornalistas e observadores espalhados em diversos pontos do país, ouvidos pelo Evidências, manifestaram a estranheza pelas restrições do WhatsApp justamente na hora da contagem de votos e entendem que pode ser uma estratégia de limitar a partilha pontual de provas de fraude, que marcou o processo de votação de vários pontos do país.

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