- Família Numaio volta a estar num escândalo de açambarcamento de terras
- Espaço coincide com a concessão do mega-projecto de Porto de Águas Profundas
- Não é a primeira vez que a família Numaio é associada a usurpação de terras
- Eugénio Numaio foi governador de Gaza e usou o poder para retirar nativos
- Através do Karingani Game Park, arrancou mais de 20 000 hectares aos nativos
Seguindo uma tradição que data desde a década 80, a família Numaio, do antigo governador da província de Gaza, Eugénio Numaio, continua a usar a sua influência para açambarcar grandes extensões de terras naquela província. Depois de ver abafados os escândalos em que esteve envolvido no distrito de Massingir, onde é associada à usurpação de mais de 20 mil hectares de terras para usá-las como moeda de troca para uma sociedade com sul-africanos na implementação da fazenda bravia Garingane Game Park, a família Numaio avança agora para uma nova frente em que pretende usurpar milhares de hectares de terra na área costeira do distrito de Chongoene, cobrindo a totalidade das localidades de Maciene, Cumbene e Chizavane, numa extensão de quase 20 quilómetros quadrados, onde supostamente pretende implantar empreendimentos turísticos e uma pequena fazenda bravia. A população das três localidades não está disposta a ceder as suas terras e ter o seu estilo de vida (agricultura e pesca) comprometido, mas tem sofrido uma grande pressão e ameaças por parte do Governo local e das chefias da Frelimo em Chongoene e na província. O espaço em disputa coincide com a concessão do mega-projecto de Porto de Águas Profundas do grupo A+ e complexo industrial da empresa Mozambique STT, apoiado pelas comunidades, mas que vem sendo inviabilizado há anos por forças ocultas.
Reginaldo Tchambule e Elísio Nuvunga
É mais um capítulo da longa metragem de conflitos de terra em Moçambique. No entanto, desta vez, o partido Frelimo está envolvido ao supostamente aparecer a proteger um empresário que responde pelo nome de Eugénio Numaio e seu filho, que pretendem usurpar grandes extensões de terra dos nativos na área costeira do distrito de Chongoene, província de Gaza, para a implantação de um projecto denominado Gaza Marino.
Aliás, as comunidades chegam mesmo a citar algum interesse particular de Roque Silva, secretário-geral do partido, que já foi director provincial do turismo em Gaza e é proprietário de uma série de empreendimentos turísticos naquele ponto do país.
Vai daí que os nativos queixam-se de estarem a ser ameaçados para aceitar aquele projecto, depois de terem sido chamados para o Governo e para o partido onde foram intimidados por terem se recusado a assinar declarações de cedência de espaço previamente redigidas pela empresa em conluio com as estruturas governamentais do distrito e da província de Gaza.
Com o apoio do líder comunitário e da Polícia da República de Moçambique (PRM), o empresário e seu filho, que já estiveram envolvidos em outros conflitos de terra ligados à ocupação de mais de 20 mil hectares de nativos no distrito de Massingir, deu um ultimato a alguns habitantes das localidades Cumbene, Maciene e Chizavane, locais onde pretende instalar os seus empreendimentos, para abandonarem as suas residências sem propostas claras de indemnização e reassentamento.
O caso está a ser gerido em surdina e longe dos holofotes para esconder as irregularidades. Evidências esteve no terreno e visitou pelo menos duas das três comunidades e constatou que aquela empresa, com a cobertura do Governo Distrital, na pessoa do Governador e dos chefes de Posto, incluindo o primeiro secretário distrital e seus sequazes, simulou um processo de auscultação pública pouco claro, ou seja, não cumpriu o que preconiza a legislação.
No terreno, através das comunidades, Evidências apurou que foram organizadas uma série de reuniões que não foram publicitadas como manda a Lei e nas quais não foi apresentado detalhadamente o projecto e não foi apresentado nenhum estudo de viabilidade ambiental. Estranhamente, no fim de cada reunião era lida uma declaração de cedência de espaço previamente escrita, a qual as comunidades recusaram-se assinar.
Comunidades se opõem ao projecto e negam perder acesso ao mar
Tal como apurado no terreno, as comunidades que se opõem totalmente ao projecto por considerarem que vai colocar em causa o seu livre acesso ao mar onde praticam a pesca – uma das principais fontes de renda – e às ricas terras onde praticam agricultura e outras actividades, incluindo a pastorícia de gado e a busca de recursos faunísticos para construção de casas e lenha para o comércio.
Segundo os nativos de Chongoene, desconfiam do referido projecto por, no seu entender, abranger toda área costeira de três localidades, perfazendo cerca de 20 quilómetros quadrados, podendo privá-los de continuar a ter acesso ao mar, onde dedicam-se à pesca como principal actividade.
Ademais, das reuniões até aqui realizadas na presença do administrador e de autoridades do partido, os mentores do Gaza Marine não falam de uma compensação justa às comunidades e nem apresentam uma proposta clara de reassentamento, no entanto o empresário pretende criar parques de animais selvagens e consequentemente desabitar os moradores sem proposta de reassentá-los.
“Numa primeira fase tivemos projecto de Porto, Corredor Logístico e Parque Industrial da senhora Olívia. Foi um projecto claro e não precisava de muito espaço e aceitamos porque ela sentou connosco e explicou tudo. Mas, com o projeto de Gaza Marino, querem levar nossas terras, desde Cumbene, Maciene até Chizavane, e depois vedar o local, o que significa que não iremos mais à pesca, machamba, criar gado e outras actividades que são nossa fonte de sobrevivência. Eles dizem que querem criar animais. Negamos. Depois disseram que querem fazer restaurantes. Algo não está claro”, disse Mônica Ilda.
Líder comunitário, chefe do posto … e o primeiro secretário acusados
Como que a preparar o campo e corromper as lideranças locais, a família Numaio, dias antes da apresentação do projecto, levou todos os líderes comunitários das três localidades e algumas chefias do partido para passarem um fim-de-semana no Karingani Game Park e, segundo as comunidades, quando voltaram passaram a agir de forma diferente, e em contramão às vontades da maioria, pelo que desconfiam que possam ter sido corrompidos.
“Quem está a vender as terras é o líder comunitário, chefe de posto, chefe de localidade, primeiro secretário do comité da zona e do distrito porque são membros do partido Frelimo”, mencionou Ilda, denunciando que há pessoas ligadas ao partido que andam pela comunidade a tentar corromper alguns membros da comunidade com dinheiro e um monte de promessas.
A situação é secundada por Anora Uamusse, que teme que com essas movimentações que contam com protecção das altas estruturas do Governo e do partido no distrito, a nível provincial e até no distrito, mesmo que resistam às vontades do empresário, “as casas já foram levadas, porque qualquer dia pode vir um escavador da Frelimo para destruir as casas”.
Por sua vez, Albertina Américo Mendza, residente no bairro Mendzene, contou que a população, para além da ameaça da destruição de casas, tem sido constantemente humilhada pelo empresário protegido pelo partido no poder e denuncia que as autoridades andam com a polícia para amedrontar os populares.
“Eles dizem que não querem muita coisa. Só querem que a gente aceite sair, mas a maioria não aceitou. Diziam que querem nos fazer evoluir para descansarmos dessa vida paupérrima que levamos, e hoje nos pressionaram para sair e não dizem para onde vamos. Para os que resistem a sair do local, poderão abandonar suas casas com a presença de máquina escavadora”, disse Uamusse, para posteriormente denunciar que Numaio aliciou o líder comunitário e outras lideranças do Governo local, que neste momento tem sido o rosto mais visível.
“O nosso líder provou que já não é nosso, nos pressiona para abandonar, mas não aceitamos. Outro dia veio com a polícia para nos pressionar para sair do local. Eu dependo da agricultura e pesca, e não tenho outra fonte de sobrevivência. Não nos respeitam, dizem que temos que aceitar porque somos pobres”, lamentou.
“Não vamos entregar terras para morrer a fome”
Um outro nativo de Chongoene, que preferiu se identificar pelo nome de Mututu, disse que a população não vai entregar as terras para morrer a fome, uma fome que tem sido a sua fonte de subsistência através da agricultura, pesca e artesanato.
“Da primeira vez que vieram, negamos porque dissemos que criamos gado. Eles entenderam e foram-se embora. Tempo depois, o nosso gado começou a morrer de forma estranha e apodrecer de imediato. Agora vem com projectos de criar animais selvagens, porque o nosso gado já morreu. Não aceitamos porque sabemos que são perigosos”, disse Mututu.
Prosseguindo, Mututu contou que já houve um projecto com propostas claras, mas que o mesmo foi boicotado.
“O projecto que havíamos aceitado é da dona Olívia, em 2017. Não queria muito espaço, nós aceitamos porque o projecto estava claro, e prometia desenvolvimento do bairro e emprego, mas agora estão a nos insistir a aceitar este projecto que não tem documentos, só falam tudo com boca”, revelou.
Quem também se opõe é José Paulino, que para além da pesca dedica-se à agricultura e aproveita da abundante vegetação para ganhar uma renda extra.
“Eu dependo da agricultura e da pesca, mas também corto palha, laca-lacas e outros materiais de construção que encontramos na praia. Os nossos dirigentes não nos dizem nada sobre o primeiro projeto, se ainda está em andamento ou não”, protesta José Paulino, pescador.
Qual é o interesse do Governo e da Frelimo no projecto?
A comunidade questiona o interesse do governo local e membros influentes da Frelimo no projecto, pois estão totalmente empenhados em convencer as comunidades para cederem suas terras, num processo de atribuição de terra descrito como meteórico e com contornos estranhos.
“É um projecto que quer ocupar quilómetros e quilómetros da nossa zona costeira, então nós entendemos que este projeto não vai fazer bem para nós, porque ocupa toda zona costeira onde é a nossa base das nossas actividades diárias. Com o projecto não temos como passar para o oceano, enquanto nós somos naturais daqui, dependemos daquele oceano, dependemos daquela mata, dependemos daquele todo terreno, temos gado e é o que nós sabemos fazer”, disse Miguel Ussene, um dos membros da comunidade de Cumbene.
Na primeira reunião, as autoridades disseram que estavam no local apenas como intermediário e que a comunidade é que devia decidir por si só, se acolhia ou não o projecto, contudo, de um tempo a esta parte, segundo conta Nora Chichongue, tudo mudou, pois é o governo local e autoridades do Partido que estão a frente da pressão para a população de Cumbene abandoner as suas terras.
“Temos dois projectos. Aceitamos o primeiro projecto. O segundo não aceitamos porque queremos o primeiro. Os do segundo projecto querem todas as terras, desde Maciene até Chidenguele. Querem tirar nossos cemitérios, nossas casas, por isso não aceitamos. É para as pessoas irem viver aonde? Dizem que vão dar dinheiro. Já esse dinheiro é para fazemos o quê?”, indagou.
Comunidade quer que o Governo explique onde parou o projecto do Porto de Águas Profundas
A comunidade de Cumbene está há quase 10 anos à espera que o Governo dê aval ao projecto da empresa Mozambique STT, que tem em vista a construção de um Porto de Águas Profundas Classe A+, parque eco-industrial e duas linhas férreas, por isso não aceita acolher nenhuma outra iniciativa na área sem que antes o governo clarifique o que está a paralisar o avanço do primeiro.
“Não podemos aceitar o segundo projeto enquanto temos o primeiro, que ainda não sabemos qual é o desfecho. O governo tem obrigação de nos dizer o que mudou. Pra nós, fica feio, não nos podem tratar como ‘guele-guele’ (prostituta). O que nós admiramos é que, neste novo projeto, a empresa proponente vem com o governo e até aqui não apresentou propostas exactas. Nós ainda queremos ver o que está a acontecer com o primeiro projecto que nós aceitamos. Então, desta forma, ainda estamos em conversação com este novo projecto. O que estamos a ver é que eles têm muita felicidade de acelerar para a gente aceitar”, disse Miguel Uamusse.
Cacilda Ussene é uma das anciãs da comunidade de Cumbene, conta que, enquanto não houver desfecho sobre o primeiro projecto e a comunidade não for informada sobre a razão de inviabilização do projecto da Mozambique STT, a comunidade não irá ceder um centímetro de terra sequer.
“Não queremos porque esse segundo projeto é complicado. Preferimos o primeiro, que já aceitamos. Não podemos nos prostituir, porque aceitamos o primeiro. Para depois aceitar o segundo, não. Queremos o desenvolvimento, mas o segundo projecto não queremos. Que projecto é esse que sai de Maciene até Cumbene e Chidenguele. Que projeto é esse? Isso é estranho, querem arrancar toda costa para negócios inconfessos. As pessoas usam muitas artimanhas para nos enganar”, protesta.
Refira-se que para melhor defender os seus interesses, as comunidades afectadas decidiram criar uma associação de nativos, que está em fase de formalização. Na semana finda, formalizaram a entrega de uma carta de apresentação ao governo local e solicitaram um encontro com o administrador, agendado para esta sexta-feira.
Rangel Numaio contraria as comunidades e diz que “estão bem receptivas”
Face às acusações que pesam sobre o seu nome, o empresário Rangel Numaio, em sua defesa ao Evidências, alega desconhecer tais acusações, pois trata-se de um projeto ambicioso que visa investir na província de Gaza, cidade de Xai-Xai, e o mesmo ainda está em processo de negociação com as famílias abrangidas com projecto.
“Nunca ouvi falar que estou em conflitos de terra. Estamos a fazer negociações, as comunidades estão bem receptivas. Ainda na sexta-feira, tivemos a consulta e estivemos bem alinhados, não sei quem fala de conflito”, disse Rangel.
Quanto ao projecto, o empresário refuta o posicionamento das comunidades, que contam tratar-se de um restaurante e parque de animais.
“É um projecto turístico que vai ser implantado naquela região, e o projecto constitui vilas e lodges, e outras coisas”, disse o empresário, em total contradição com o que a comunidade diz em primeira pessoa.
Numaio garantiu ainda que a implementação do projecto só será possível após o consenso entre as duas partes envolvidas. Segundo as orientações do governo, “as famílias abrangidas terão seus benefícios”.
Histórico de açambarcamento de terras pela família Numaio data da década de 80
Não faz muito tempo, a família Numaio esteve envolvida numa série de conflitos de terras, com acusação de ter usurpado milhares de hectares de terra das comunidades em Massingir, Gaza e Magude, na província de Maputo.
A terra que começou a ser açambarcada nos anos 80, quando Eugénio Numaio era governador, acabou sendo usada como activo para que aquela família entrasse num milionário negócio eco-turístico denominado Karingani Game Park.
Só em Massingir, as comunidades habitantes do Cubo concordaram em dispensar 10,000 hectares a Adolfo Bila, administrador do distrito de Massingir, durante o mandato do primeiro Presidente da República de Moçambique, Samora Machel. De seguida, outros 10,000 hectares foram dispensados ao antigo Governador de Gaza, Eugénio Numaio, após ele ter falado, numa reunião com os membros da Associação das Comunidades, sobre a importância do Ecoturismo para a comunidade.
As comunidades têm acusado aquela família de usurpar a terra para criar Áreas Ecológicas para os mega-ricos, com auxílio de líderes políticos locais, através de subornos, promessas falsas e conflitos de terra deliberadamente fomentados.
“Os primeiros 10,000 hectares foram passados a Numaio por Bila, e nós concordamos com isso, na expectativa de que o antigo administrador cumprisse com as suas promessas de responsabilidade social em troca da terra. Mas ele não cumpriu com as suas promessas. Nenhum membro da Comunidade Cubo está a trabalhar para a Twin City”, disse Fubai.
Twin City Development foi estabelecida em 1984 por Arnold Pistorius, tio de Oscar, e tem consolidadas 27 porções de terra ao longo da fronteira moçambicana dentro da Reserva Karingani Game Reserve, de 137,000 hectares. Ao longo do tempo, oficiais do Governo moçambicano ajudaram a tomar 20,000 hectares de terra das comunidades a favor da Karingani, o que foi amplamente difundido na altura. Entretanto, a família conseguiu abafar o assunto na imprensa e agora avança para mais áreas.
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