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São 08h17 quando a tocha atravessa o portão enferrujado da Escola Primária de Nangade-sede. O pátio, poeirento e irregular, está cheio de crianças. Uma menina, de trancinhas e sandálias gastas, ergue o braço e toca a base metálica do bastão. Sorri. “É a chama do país”, diz, tímida, como quem segura algo sagrado.
A cena repete-se, de forma quase silenciosa, em dezenas de localidades. A Chama da Unidade Nacional, ausente dos circuitos nacionais nos últimos anos, regressa com o novo ciclo presidencial. Regressa sem aparato, sem campanha, sem multidões alugadas. E é talvez isso que a torna mais visível — mais sentida.
“A Chama estava esquecida, mas não estava morta”, diz Alfredo Massango, jornalista que acompanhou parte do percurso da tocha.
“O que vimos nas províncias não foi indiferença. Foi emoção. Gente que se levantou cedo para ver algo que lhes recorda que ainda fazem parte de um todo”, descreve.
A origem do fogo
A Chama da Unidade não é uma invenção recente. Simbolizando união entre as nações, entre os povos, ela surgiu na antiguidade, na Grécia antiga, tendo sido reintroduzida nos Jogos Olímpicos de Verão de 1928. Nos Jogos de Berlim, Alemanha, em 1936, verificou-se o seu revezamento, acto simbólico conectando o passado e o presente, num ambiente de paz e união.
Muitas vivalmas estarão recordadas da tocha olímpica dos mais recentes Jogos Olímpicos de Verão, realizados em Paris, capital da França, em 2024, que não se alheou à tradição: ela foi acesa na cidade de Olímpia, na Grécia, o berço dos Jogos Olímpicos, tendo percorrido grande parte da França até chegar ao local que acolheu a cerimónia de abertura.
Em 1980, Samora Machel entrou no Estádio da Machava empunhando uma tocha acesa, marcando a abertura dos Jogos Desportivos da Juventude. Mas o gesto transcendia o desporto. Era uma declaração simbólica: o país é novo, e é de todos.
O saudoso Presidente Samora fazia-o (acender a Chama da Unidade Nacional), nessa ocasião, pela segunda vez, uma vez que, cinco anos antes, nomeadamente em 1975, ano no qual a Chama da Unidade Nacional foi acesa pela primeira vez no País, mais concretamente a 9 de Junho daquele ano, pelo veterano da luta de libertação nacional, Raimundo Pachinuapa. Mobilizar os moçambicanos em prol da edificação de um novo Estado foi o mote.
Ao longo dos anos, a chama atravessou fases. Teve maior destaque durante o mandato de Armando Guebuza, quando este a acendeu (a terceira Chama da Unidade Nacional) no contexto dos 30 anos da Independência Nacional. Outra vez, o apelo à união achava-se presente. A quarta Chama teve, também, timbre de Guebuza, quando a mesma foi acesa a 7 de Abril de 2010, sob pretexto de celebração dos 35 anos da Independência Nacional.
Em todas as quatro ocasiões acima, a Chama da Unidade Nacional foi acesa na mesma circunscrição territorial: o distrito de Nangade, na Província de Cabo Delgado. Quando a Chama acendeu pela quinta vez, sob a superintendência de Filipe Nyusi, em 2015, finalmente o locus mudou para um outro distrito, mas ainda em Cabo Delgado: Mueda, mais concretamente em Nametil.
União. Convivência. Tolerância. Esta é a tríade que Nyusi destacou no seu discurso de circunstância.
Com Chapo, foi lançada a sexta Chama, nomeadamente a 7 de Abril último, também em Nangade, na Província de Cabo Delgado.
“Símbolos como este não servem para resolver problemas — servem para não nos esquecermos de que temos um país em comum”, afirma Elina Niquice, socióloga. “E, num tempo em que tudo se fragmenta, o gesto de reacender é, por si só, político.”
Um país de contrastes
Em Moçambique, poucos símbolos conseguem atravessar, ao mesmo tempo, geografias e afectos. A bandeira, o hino, a camisola da selecção. E, em menor escala, a Chama. Mas o País continua profundamente desigual — e isso afecta também o modo como se recebe o gesto.
Em Niassa, a professora Lídia Cassamo levou os seus alunos para a cerimónia. “Eles não sabiam o que era. Mas quando ouviram o hino e viram a tocha, houve silêncio. Depois começaram a fazer perguntas. E isso, para mim, já valeu.”
Em Pemba, o camionista Saíde Jumal tem outra opinião: “a minha estrada está cheia de buracos. Levar a Chama por ali não muda nada. O país não é uma tocha. É um posto de saúde que não tem soro.”
São olhares distintos — e ambos legítimos. O que a Chama provoca é, no mínimo, uma interrupção. Um momento de paragem. Um espelho. E, para um país em movimento desordenado, isso pode ser mais do que parece.
O que a Chama carrega
A Chama não carrega apenas fogo. Carrega nomes e memórias. Eduardo Mondlane, cuja visão antecipou o que hoje chamamos de Unidade Nacional.
Josina Machel, símbolo de resistência e feminismo antes do tempo. Carlos Cardoso, cuja caneta ardeu mais que muitos discursos. Uria Simango, Joana Simeão, Afonso Dhlakama — figuras incómodas, mas parte da história.
Carrega também os combatentes anónimos. Os que tombaram sem lápide. A parteira de Nacala que nunca saiu do anonimato. O lavrador que atravessou a guerra com a enxada nas mãos. Carrega os que hoje ainda fazem o país funcionar: os professores mal pagos, os enfermeiros resilientes, os técnicos das rádios comunitárias. O técnico da via e obras que garante que o comboio não pare de apitar.
E carrega os que nos fizeram sonhar: desde Fany Mpfumo, Jeremias Ngwenha, Zaida Chongo, Thazy, Madala, Chico António, José Guimarães…até Azagaia.
Um gesto sem alarde
O mais notável desta nova edição da Chama é o que ela não fez: não houve discursos retóricos, não houve mega-eventos transmitidos em directo, não houve uso partidário evidente. Foi um gesto simples, na presença de todas as sensibilidades, inclusive com espaço para discursar — e por isso mesmo poderoso.
“O novo Presidente percebeu que a reconciliação simbólica é tão urgente quanto a reconciliação orçamental”, diz o analista João Luís Mabunda. “Ao recuperar a chama, fez uma escolha. Não uma escolha populista, mas sensível.”
E é nessa sensibilidade que talvez resida o seu mérito. Porque a chama, se bem conduzida, pode deixar de ser mero ritual e passar a ser tecido. Uma linha que cose o país, por dentro. “Com a Chama da Unidade [Nacional], queremos apelar a todos os moçambicanos para nos unirmos”, precisou o Presidente da República, Daniel Chapo, na ocasião.
Que país se reflecte nesta Chama?
Em muitos locais por onde passou, a Chama acendeu mais perguntas do que certezas. Crianças perguntaram pela bandeira. Velhos recordaram os tempos em que havia “orgulho de pertencer”. Estudantes levantaram dúvidas sobre a guerra, sobre os heróis esquecidos, sobre os símbolos enterrados.
E, em meio a tudo isso, uma ideia começou a emergir: a de que talvez ainda haja espaço para um país partilhado.
A Chama não é a solução. Mas pode ser a pergunta certa. E isso, num país em que tantas respostas já não fazem sentido, é um gesto necessário.
Voltamos para Nangade, 26 de Abril, encontramos a menina de trancinhas, Tina, que desenhou num caderno velho uma chama e escreveu por baixo: “eu toquei Moçambique”, um testemunho claro de como aquele momento impactou a vida da pequena.
*Colaboração

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