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Arão Valoi
Num momento em que, mais do que nunca, Moçambique precisa de serenidade institucional, grandeza política e reconciliação nacional, o Ministério da Justiça decidiu remar contra a corrente de estabilização conduzida pelo novo Presidente da República, Daniel Chapo. A recente recusa ao registo do Partido Anamalala, liderado por Venâncio Mondlane, com o argumento de que o nome está numa língua local, ultrapassa o campo da mera burocracia. Trata-se de um acto político que contraria, frontalmente, os sinais de abertura e diálogo lançados a partir da mais alta magistratura da Nação. Não é apenas uma recusa administrativa — é uma mensagem perigosa de exclusão, que enfraquece os pilares de uma democracia saudável.
É impossível ignorar a ironia da situação. Enquanto o Presidente Chapo se compromete com uma retórica e prática de reconciliação — promovendo encontros inéditos com líderes da oposição e dialogando abertamente com figuras como Mondlane, lançando a Chama da Unidade Nacional — é o próprio Ministério da Justiça que parece empenhado em minar esses esforços. A recusa do nome Anamalala não é apenas um gesto tecnicamente infeliz, é um sintoma de resistência política interna à mudança, um entrave deliberado à construção de pontes entre o poder e os que dele divergem. Ao impedir o registo de um partido por causa do idioma utilizado no seu nome, o Estado contradiz a Constituição da República de Moçambique (CRM), que não só reconhece as línguas nacionais como as valoriza como património cultural e factor de unidade.
Para além do absurdo do argumento jurídico, existe um facto que torna esta decisão ainda mais indefensável: o mesmo Ministério da Justiça já registou, anteriormente, um partido político com nome numa língua local. Trata-se do Partido AMUSI – Acção do Movimento Unido para Salvação Integral, cujo acrónimo AMUSI significa “família” em Emakua. A legalização do AMUSI demonstra, de forma inequívoca, que o uso das línguas nacionais é legal, possível e praticado. Ao aceitar o AMUSI e recusar Anamalala, o Ministério revela o carácter político e selectivo das suas decisões. Fica claro que o problema não é o idioma. É o contexto. É o protagonista. É o desconforto que certas figuras públicas causam às estruturas do poder estabelecido.
A Constituição moçambicana é clara ao afirmar, no seu artigo 9.º, que o Estado valoriza as línguas nacionais como património e factor de unidade. Permitir que os partidos usem essas línguas nos seus nomes não é um capricho; é uma expressão concreta desse princípio constitucional. Negar esse direito é negar o pluralismo cultural e linguístico que está no cerne da identidade nacional. É declarar que só há lugar na arena política para quem fala a linguagem da elite dominante — uma linguagem muitas vezes desligada da realidade das populações que vivem fora dos centros urbanos e das esferas do poder.
Importa também lembrar que esta não é a primeira vez que Venâncio Mondlane enfrenta obstáculos de natureza técnica para o exercício dos seus direitos políticos. Ao longo da sua carreira, têm sido frequentes os entraves administrativos, as decisões judiciais controversas, os impedimentos eleitorais e os bloqueios burocráticos. O padrão é evidente: há um esforço sistemático para limitar o seu alcance político. Mas o que torna esta situação particularmente grave é o momento em que ocorre — um período de tentativa de viragem institucional, liderado por um Presidente que, até aqui, tem procurado marcar uma nova fase de governação. O uso da língua como pretexto para exclusão não é mais do que uma camuflagem para o medo. Medo de uma nova força política que mobiliza, que inspira, que começa a ganhar espaço, sobretudo entre uma juventude desiludida com as promessas não cumpridas da democracia.
Ao barrar o partido Anamalala, o Ministério da Justiça não só infringe princípios constitucionais e morais, como mina directamente a autoridade e a visão política do Presidente da República. Contraria o espírito de reconciliação e envia uma mensagem dúbia à sociedade: ou o Presidente não controla os seus ministros, ou os seus gestos de abertura não passam de encenação. Em qualquer dos casos, a credibilidade do Executivo sai fragilizada. E, num contexto pós-eleitoral sensível, com tensões latentes e desafios profundos no campo da coesão social, decisões como esta não são apenas infelizes — são irresponsáveis. É legítimo questionar: de que lado está, afinal, o Ministério da Justiça? Do lado da democracia e do Estado de Direito? Ou do lado da hegemonia disfarçada, onde a burocracia serve como ferramenta de censura e exclusão?
Este episódio não é isolado. Encaixa-se numa cultura política do bloqueio e da intimidação, onde a diferença é tratada como ameaça e a pluralidade como desordem. Uma cultura que sufoca a imprensa crítica, instrumentaliza os tribunais, distorce a justiça eleitoral e marginaliza os cidadãos que ousam pensar diferente. É uma cultura de partido único, disfarçada de pluralismo. Mas essa cultura está a ser desafiada — não apenas por líderes da oposição, mas pelo próprio povo moçambicano, que começa a identificar com clareza os mecanismos de manipulação e a exigir maior transparência, maior justiça e mais inclusão.
Venâncio Mondlane pode não conseguir, por agora, registar o partido Anamalala. Mas a ideia que esse nome transporta — a ideia de uma política que fala a língua do povo, que se enraíza na cultura local, que respeita a diversidade, que diz basta — essa ideia já não pode ser barrada. Está viva nas comunidades, nos jovens, nos bairros, nas redes sociais, nos debates públicos. E continuará viva, com ou sem registo oficial. Porque o verdadeiro patriotismo não é repetir slogans de unidade nacional — é permitir que essa unidade se construa na base do respeito mútuo, da igualdade de oportunidades e da liberdade de organização.
Chegou a hora de o Ministério da Justiça definir de que lado da história quer estar. Pode escolher alinhar-se com os princípios constitucionais e com a visão de reconciliação do Presidente Chapo. Ou pode continuar a agir como uma extensão partidária, travando a democracia em nome de um formalismo hipócrita. Mas deve saber que a história é implacável com os que se colocam do lado errado da justiça. E que, mais cedo ou mais tarde, os que tentam calar as vozes do povo acabarão por falar sozinhos.

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