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- Moçambique “recolonizado pela corrupção”:
- Hanlon conclui que o país não foi vítima apenas da ganância de uma elite local, mas também de um projecto internacional deliberado
Sob chancela da Ethale Publishing, o novo livro do jornalista e investigador Joseph Hanlon, intitulado “Moçambique Recolonizado através da Corrupção: Como o FMI criou um estado oligárquico”, lança uma crítica contundente contra o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, acusando-os de terem deliberadamente fomentado um Estado cleptocrático e oligárquico em Moçambique como uma forma de “recolonização económica”.
Evidências
A obra, baseada em décadas de reportagem e investigação, traça um paralelo entre as políticas de “terapia de choque” impostas pelo FMI no rescaldo da Guerra Fria e o surgimento de uma elite endinheirada e poderosa – uma “nova nomenclatura” – que enriqueceu através da pilhagem de recursos e de privatizações fraudulentas, muitas vezes com a conivência ou incentivo da comunidade internacional.
Hanlon inicia a sua narrativa com um caso que se tornou emblemático da impunidade e da corrupção: o assassinato em 2001 de António Siba Siba Macuácua, então presidente do Banco Austral. Siba Siba foi atirado do 15.º andar da sede do banco em Maputo enquanto investigava um desvio de mais de 150 milhões de dólares. O livro sustenta que o seu homicídio, tal como o do jornalista Carlos Cardoso, foi convenientemente ignorado pelos doadores internacionais, que continuaram a canalizar centenas de milhões de dólares em ajuda, premiando o que consideravam um “bom desempenho” na transição para uma economia de mercado.
Citando Sherlock Holmes, Hanlon refere o “curioso incidente do cão durante a noite”: os “cães de guarda” internacionais não ladraram perante o crime e a corrupção, porque o saque e a pilhagem serviam aos seus interesses de “recolonizar” a economia moçambicana.
O cerne da tese de Hanlon reside no período pós-Guerra Fria. Com a queda do Muro de Berlim, o FMI, apoiado pelas potências ocidentais no G7, impôs uma transição económica radical – a “terapia de choque” – a antigos Estados socialistas como Moçambique. Esta terapia, argumenta o autor, não visava ao desenvolvimento, mas sim uma rápida “conversão” de elites comunistas em capitalistas aliadas do capital multinacional.
Em Moçambique, isso significou a privatização acelerada e por vezes corrupta de milhares de empresas estatais. A antiga nomenklatura da Frelimo, com o seu acesso privilegiado a terras, contratos e recursos, tornou-se a nova classe de oligarcas. Estes, por sua vez, funcionam como “compradores” – intermediários que lucram (obtêm “rendas”) facilitando o acesso de empresas estrangeiras aos recursos nacionais, sem gerar desenvolvimento real para o país.
Austeridade para o povo, riqueza para a elite
Enquanto esta nova elite enriquecia, o FMI impunha duríssimas políticas de austeridade ao Estado moçambicano. Salários na função pública foram reduzidos a níveis de pobreza, e a reconstrução de infra-estruturas destruídas pela longa guerra civil (1977-1992) foi deliberadamente travada, com o argumento de que seria “inflacionária”.
Hanlon contrasta esta abordagem com o Plano Marshall, que reconstruiu a Europa após a Segunda Guerra Mundial. Para Moçambique, devastado por um conflito que matou um milhão de pessoas, não houve um plano semelhante. Pelo contrário, a austeridade forçou professores, enfermeiros e funcionários a cobrar “taxas informais” por serviços outrora gratuitos, institucionalizando a corrupção no dia-a-dia e criando o que os moçambicanos chamam de “cabritismo”.
A descoberta de vastos recursos naturais (gás, rubis, grafite) a partir dos anos 2000 apenas aprofundou, segundo ele, o modelo, criando uma “maldição dos recursos”. A riqueza gerada beneficia desproporcionadamente as elites e as corporações multinacionais, enquanto a maioria da população, especialmente os jovens, fica para trás em situação de pobreza e sem perspetivas.
Hanlon argumenta que esta exclusão foi um dos motores da insurgência em Cabo Delgado, iniciada em 2017, e dos massivos protestos juvenis contra a fraude eleitoral em 2023 e 2024. A repressão brutal destes protestos, incluindo o assassinato em directo no Facebook do activista Mano Shottas, é apresentada como mais um capítulo na luta entre os que se beneficiam do sistema oligárquico e uma nova geração que exige mudança.
“Moçambique Recolonizado através da Corrupção” é um relato contundente que desafia a narrativa oficial sobre o “sucesso” económico de Moçambique. Joseph Hanlon conclui que o país não foi vítima apenas da ganância de uma elite local, mas sim de um projecto internacional deliberado – uma “acção coletiva” – liderado pelo FMI e pelo Banco Mundial para recolonizar economicamente o país, substituindo o poder colonial directo por um controlo exercido através de instituições financeiras e de uma oligarquia local aliada.
A obra serve como um alerta sobre os custos humanos do fundamentalismo de mercado e um apelo para que se preste atenção aos moçambicanos que, como Siba Siba, Carlos Cardoso e Mano Shottas, continuam a lutar por um futuro diferente.



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