Tráfico humano continua uma realidade ignorada em Moçambique

DESTAQUE SOCIEDADE
Share this

·         Fardo diz que o Governo é o maior culpado pelo tráfico humano em Moçambique

·         Desemprego e exclusão social entre factores que beneficiam os traficantes

Em pleno século XXI, pessoas ainda são traficadas no mundo, comercializadas como objectos de consumo e lucro. No contexto moçambicano, o tráfico humano ainda é uma cruel realidade, seja como fonte, trânsito ou país de destino. Trata-se de um fenómeno complexo, que se reveste de múltiplas facetas, que incluem a comercialização de seres humanos para fins de exploração sexual, trabalhos forçados e determinadas práticas tradicionais que visam o enriquecimento rápido e ilícito. Com um controlo de fluxos migratórios deficitário, os traficantes têm em pessoas pessoas mais vulneráveis, sobretudo crianças, mulheres e jovens desempregados, as suas principais vítimas. Para o presidente do Parlamento Juvenil, David Fardo, e activista do Rede dos Defensores dos Direitos Humanos, o Governo é culpado pela marginalização e tráfico de jovens pelo facto de não ter políticas para mudar as condições de vida da juventude.

Duarte Sitoe

O tráfico humano, independentemente das formas que possa revestir, constitui, sem dúvidas, uma das mais graves violações dos direitos humanos, podendo ser considerado como uma verdadeira “epidemia mundial” lesiva da dignidade humana e da liberdade individual.

Nos últimos anos, para além de ser o corredor de drogas, Moçambique tornou-se corredor do tráfico humano. A título de exemplo, em Julho de 2023, a Procuradora-Geral Adjunta de Moçambique, Amabélia Chuquela, reconheceu que o tráfico de pessoas está a tirar sono ao Ministério Público.

“Nós temos, infelizmente, casos de tráfico de pessoas, de cidadãos moçambicanos para o reino de Eswatíni, para África do Sul e também para Tanzânia, e, só para exemplificar, em 2022 foram detectadas 38 vítimas moçambicanas que haviam sido recrutadas por dois cidadãos moçambicanos, na província de Inhambane, para trabalharem numa quinta, na África do Sul. Isso para dizer que ainda continuamos a registar casos de tráfico de pessoas”, lamentou.

E o alarme do Ministério Público não é para menos. A cada dia que passa multiplicam-se casos reportados e não só de pessoas que são vítimas de tráfico humano para abastecer o mercado doméstico, como também internacional.

Em Maio do ano passado, as autoridades sul-africanas resgataram oito menores moçambicanos que tinham sido traficados para aquele País, em Janeiro do mesmo ano, para trabalhar em uma fábrica chinesa na província de Gauteng.

Nem sempre as autoridades conseguem estar à altura de responder

Este ano, concretamente no mês de Maio, o Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) abortou uma tentativa de tráfico de jovens para Vietname, onde seguiam com promessa de emprego.

No entanto, sorte igual não teve um grupo de jovens moçambicanos que está a ser escravizado em minas de carvão mineral, em Laos, no continente asiático, depois de terem sido levados de Moçambique com promessas de emprego para melhorarem as suas condições de vida e das suas famílias.

O caso foi denunciado no passado dia 09 de Junho corrente, envolvendo mais de vinte cidadãos moçambicanos e estavam previstas outras levas. Um dos cidadãos, o qual prefere não ser identificado por temer represálias, lançou, através de vídeos, apelos de ajuda às autoridades moçambicanas para o seu repatriamento. 

“Aqui a situação está mal, estamos a sofrer. A situação está muito mal mesmo, há colegas a quem foram arrancados telefones. Telefones foram partidos, mas através dessas novas gravações estamos a fazer o nosso pedido de ajuda”, disse um dos moçambicanos levados para o Laos.

Numa declaração à TV Sucesso, o cidadão moçambicano revelou a situação degradante em que vivem e trabalham no ramo da exploração mineira. À mesma estação televisiva, o porta-voz do Governo, Inocêncio Impissa, garantiu que o executivo não está alheio a esta denúncia. 

“Estas denúncias permitirão que Moçambique possa, através dos canais diplomáticos, conseguir compreender e ver como reverte ou salva a situação. Este é um caso anunciado, mas existem outros, eventualmente, sobre os quais não temos controlo; os moçambicanos saem por várias razões do país e não sabemos quais são os motivos; no entanto, sempre que há indícios de hipótese de tráfico humano, Moçambique quando se apercebe disso intervém imediatamente para evitar situações dessas”, declarou Impissa.

De crescimento demográfico acelerado, desemprego, dificuldade de acesso a serviços sociais, fragilidade das instituições (corrupção), porosidade das fronteiras, baixos níveis de escolarização ou de formação profissional, desigualdades socioeconómicas, pobreza extrema, a flutuação de preços dos da primeira necessidade entre outros, configuram como um conjunto de motivos, para a fácil exposição das pessoas que caem nas diversas redes dos traficantes de pessoas para os seus interesses, em muitos casos lucrativos.

Prendem-se pessoas que recrutam os traficados, mas nunca se vai a fundo

De acordo com um estudo da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, a região Centro de Moçambique é a que mais regista casos de tráfico no país, sendo que quase 70% dos casos de extracção de órgãos ocorrem na região de Tete, Zambézia, Manica e Sofala.

Perante os últimos acontecimentos, Francisco Guilhermina, membro da Rede dos Defensores dos Direitos Humanos em Moçambique, observa que o Governo tem sido conivente nos casos de tráfico de pessoas, uma vez que quase nunca envida esforços para encontrar os cabecilhas deste crime.

“Estamos num dilema muito sério sobre o assunto de tráfico humano no nosso país, pela forma como se sucedem casos de tráfico de pessoas fica parecer que tem a colaboração do próprio Governo, visto que nada se faz e às vezes prendem-se pessoas que recrutam os traficados, mas nunca se vai a fundo para se encontrar os mandantes destes crimes e, nos últimos anos, aparecem muitos que se dizem ser chineses por trás destes recrutamentos principalmente para Ásia, entretanto em nenhum dos casos apareceu algum chinês responsabilizado por esses actos”, descreve.

Arminda Manuel, estudante de Direito na Universidade Eduardo Mondlane, contou ao Evidências que recebeu abordagens através das redes sociais para um bolsa de estudos com tudo pago na Rússia, mas acabou declinando o convite, depois de ter sido alertada por uma amiga que há indivíduos que usam as redes sociais para traficar pessoas.

“Estava entusiasmada com a oportunidade de dar seguimento aos estudos na Rússia. Contudo, depois daquela reportagem de moçambicanos que estão a ser escravizados em Laos, uma amiga disse que tinha que investigar antes de seguir viagem. Felizmente, acabei não seguindo viagem porque percebi que se tratava de uma rede que usava as redes sociais para recrutar pessoas com promessa de estudos”, sublinhou.

Fardo diz que o Governo é o maior culpado pelo tráfico humano em Mocambique

Vitor Magaia, actualmente em Portugal, preferiu fechar os olhos e arriscar, uma vez que acedeu a um recrutamento das redes sociais para se desvincular do exército de desempregados no país. Neste momento, Magaia trabalha como carpinteiro na Cidade do Porto, mas alerta aos jovens moçambicanos sobre os perigos de seguir para o velho continente através do recrutamento nas redes sociais.

“Depois de bater muitas portas, surgiu a oportunidade de seguir para Portugal. Vi um anúncio nas redes sociais e me candidatei. No início fiquei reticente, mas fui um dos seleccionados. Completei dois anos a trabalhar aqui e não me arrependo da escolha que fiz. No entanto, há casos de irmãos que foram enganados e estão a ser escravizados. Aqui em Portugal há muitos moçambicanos que vivem em tendas porque não têm emprego e, para piorar, faltam-lhes condições para regressar às origens. O sonho de trabalhar na Europa seduz muitos jovens e, por isso, muitos acabam caindo nas mãos de exploradores”, disse Vitor Magaia, para depois lamentar a situação dos jovens que estão a ser escravizados em Laos.

“Acompanhei uma reportagem através das redes sociais de jovens que saíram de Moçambique com uma mala cheia de sonhos, porém, quando chegaram a Laos, foram escravizados. Se o nosso país criasse políticas para favorecer a juventude, nada disso estaria a acontecer. Os jovens preferem arriscar a (do que) viver na pobreza. O nosso Governo deve abrir os olhos porque acredito que há muitos moçambicanos que estão sendo escravizados e clamam por ajuda. Infelizmente, até aqui o Executivo nada fez para repatriar aqueles jovens que estão a ser escravizados naquele país asiático”, destacou.

O presidente do Parlamento Juvenil, David Fardo, mostrou-se preocupado com a situação de alguns jovens moçambicanos aliciados a viajar para o estrangeiro com promessas de emprego e melhores condições laborais, mas que no terreno a realidade estava aquém do desejado.

“É preocupante a situação actual da juventude que está cada vez mais marginalizada, os seus direitos não são respeitados, com principal enfoque para o direito à educação, formação de qualidade, habitação, emprego remunerável, saúde. Fazemos menção destes direitos porque são os mais básicos de uma sociedade e os jovens acabam por ser enganados pelas promessas de emprego como forma de responder às suas necessidades, sobretudo a habitação.  Hoje falamos de jovens que são aliciados para trabalhar no exterior, mas internamente temos situações de jovens trabalhando com diversas entidades, algumas privadas, e lideradas por cidadãos estrangeiros  que no geral violam de forma gravosa os direitos laborais, mas, devido ao contexto de falta de oportunidades, a juventude prefere as condições desumanas de trabalho onde a neoescravatura está patente como mecanismo de colocar o pão na mesa”, disse David Fardo.

Prosseguindo, Fardo entende que  o desemprego e exclusão social são factores que contribuem para o aliciamento de jovens, e aponta o dedo ao Governo pelo crescimento exponencial do tráfico humano em Moçambique.

“Num país em que a juventude é a maioria, e que supostamente o Governo tem como epicentro da sua governação a juventude, é inconcebível que os jovens continuem marginalizados e excluídos, e, se formos a olhar para o actual PQG 2025-2029 em termos de representatividade e participação em espaços de tomada de decisão e cargos de direcção, apenas se almeja aumentar dos actuais 4% para 7%, uma percentagem irrisória para o nosso contexto. E isso tem implicações negativas nas condições de vida dos jovens pelo facto de a maioria das questões desta camada serem discutidas por adultos e não com os directamente afectados.

O que está a falhar, está directamente relacionado com a exclusão, a falta de transparência nas diversas oportunidades de financiamento e a corrupção exacerbada. De várias oportunidades de financiamento existentes, poucas geraram frutos. As políticas públicas são teoricamente favoráveis, mas o que falha é a implementação. É preciso que haja maior atenção à gestão da coisa pública assim como o engajamento e empoderamento contínuo da juventude para uma maior pressão aos tomadores de decisão e gestores.  O maior culpado da exploração dos jovens e sua marginalização é o governo do dia que olha para esta camada como um numero estatistico e não na qualidade de contribuintes para o desenvolvimento do pais com necessidades e soluções tangiveis”.

Contactado pelo Evidências para falar de políticas para que os jovens moçambicanos não sejam uma presa fácil para grupos de tráfico humano, o Conselho Nacional da Juventude, instituição chancelada pelo Ministério da Juventude e Desportos, prometeu se pronunciar oportunamente sobre o assunto.

 

 

Promo������o
Share this

Facebook Comments

Tagged