“Eleições devem pacificar o País (…) e isso começa por divulgar rapidamente os resultados” – Hélder Injojo

DESTAQUE POLÍTICA SOCIEDADE
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  • A rebeldia inesperada de um deputado e autor convencional
  • “Deputados tornaram-se oficiais do partido (…) bem contrário ao espírito de representante do povo”
  • “(…) é preciso que todas as forças políticas tenham consciência de ter igual oportunidade de vencer eleições”
  • “Um sistema eleitoral que não garante representação justa semeia instabilidade”
  • “Esta é a condição para que os derrotados não sejam tentados a recorrer à violência”

O livro “Regime Jurídico das Assembleias Representativas em Moçambique”, da autoria do deputado e vice-presidente da Assembleia da República, Hélder Injojo, tornou-se num fenómeno de vendas que contrasta com o carácter reservado do próprio autor e apresenta-se como um tratado jurídico que transcende o círculo académico e pode gerar um debate público nas lides políticas resistentes aos desafios que a modernidade impõe. É que, sob um título aparentemente técnico, esconde-se uma análise “corajosa e lúcida” que identifica as falhas na representação política como uma das causas que concorrem para o povo recorrer à violência como forma de ser ouvido, ao mesmo tempo que diagnostica a profunda marginalização da figura do deputado no sistema político. A obra foi lançada na passada quinta-feira (23) com chancela da Escolar Editora e, em poucos dias, já está esgotada.

Nelson Mucandze

O livro tem mais de 280 páginas, e, embora o próprio autor se recuse a tratá-lo como crítica partidária e prefere apresentá-lo como um “exercício meramente académico” e uma “contribuição de um pacato cidadão”, aborda questões que mais vezes são tratadas em voz baixa e sem eco nos corredores políticos que não observam a disciplina partidária. Tal é o caso de alinhamento partidário que não permite que o deputado tenha consciência própria e siga a manada, em alusão à concertação, previamente feita numa reunião da bancada.

É no capítulo quatro, onde o autor versa sobre o Regime Jurídico de Eleição das Assembleias Representativas em Moçambique, onde ele explora a relação quebrada entre o eleitor e o eleito. O autor parte de um princípio fundamental: “O povo é, ao mesmo tempo, sujeito e súbdito do poder político”. Como sujeito, é a fonte de toda a legitimidade; como súbdito, sofre as consequências das decisões tomadas por aqueles em quem delegou o poder.

Quando esta delegação falha, gera-se um sentimento de marginalização e derrota. O livro argumenta, de forma clara, que um sistema eleitoral que não garante uma representação justa dos diferentes grupos sociais, incluindo géneros, classes, religiões e etnias, está a plantar a semente da instabilidade.

“Uma representação justa irá evitar sentimentos de derrota e marginalização entre alguns grupos, principalmente as minorias que poderiam, caso contrário, conduzir a insatisfação social ou mesmo à violência política”, lê-se num dos excertos analisados.

Esta não é uma mera observação teórica. Injojo contextualiza-a na realidade moçambicana e africana, onde a diversidade étnica e cultural torna a função representativa ainda mais essencial. Se os cidadãos não se revêem nos seus mandatários, se sentem que o seu voto não tem impacto real e que as instituições são surdas aos seus apelos, o contrato social enfraquece. É neste vazio de legitimidade que formas de protesto extra-institucionais, incluindo a violência, podem emergir como o único meio de chamar a atenção para reivindicações negligenciadas. O sistema, ao não ser “inclusivo”, falha na sua função primordial de canalizar o descontentamento para vias democráticas.

Para o autor, o “sistema eleitoral deve permitir que os resultados sejam considerados legítimos pelos actores e pelos cidadãos. O sistema eleitoral deve ajudar a reduzir eventuais conflitos, em vez de os exacerbar. Uma das condições de base para que isso aconteça é que os resultados possam ser conhecidos rapidamente. O mais importante, ainda, é preciso que todas as forças políticas tenham consciência de ter igual oportunidade de vencer eleições e de não ficarem totalmente excluídas da governação, quando não as ganham. Esta é a condição para que os derrotados não sejam tentados ou empurrados a actuar fora do quadro democrático, recorrendo eventualmente à violência como forma de luta política”, lê-se no livro.

O profundo fosso entre o cidadão e o seu representante

Para compreender por que razão o povo se sente distante do poder, Hélder Injojo dedica uma análise crítica ao que considera um dos grandes entraves à representação em Moçambique, o sistema de listas plurinominais fechadas.

Neste modelo, são os partidos políticos, e não os eleitores, que definem a ordem dos candidatos nas listas eleitorais. Quem está no topo é eleito, independentemente da sua ligação com uma circunscrição ou da sua popularidade individual perante o eleitorado. O resultado, como explica o autor com “equilíbrio e coragem”, é um “distanciamento entre o cidadão e o seu representante”.

O deputado, neste sistema, deve lealdade primeiramente ao partido que o colocou na lista, e não aos cidadãos que supostamente representa. Essa dinâmica marginaliza a figura individual do deputado, esvaziando o seu papel. Ele deixa de ser um interlocutor directo das angústias do povo para se tornar, nas palavras do livro, um “intermediário formal do poder”, e não um verdadeiro representante.

Esta crítica é feita a partir do interior do sistema, o que lhe confere uma autoridade singular. Injojo não ataca de fora, mas propõe uma reflexão a partir de dentro, alertando que esse modelo, embora possa gerar estabilidade partidária a curto prazo, corrói a qualidade da democracia a longo prazo.

“O modelo de listas fechadas tem suscitado muitos debates pela sua fraqueza no processo de representação e conexão entre o eleitor e o eleito”, escreve, convidando a um repensar do sistema que concilie a disciplina partidária com uma “maior responsabilização individual dos deputados”.

“A prevalência dos partidos sobre o deputado individual ou até sobre o grupo parlamentar atinge dimensões praticamente inéditas, contribui para criar nos deputados o espírito de oficial do partido, bem contrário ao espírito de representante do povo”. Prossegue que os deputados individualmente considerados quase não têm direitos, devendo entender-se como simples delegados do partido ou serventes dos líderes e esse espírito de oficial do partido é alimentado evidentemente por várias fontes e por várias maneiras, “a começar pelo sistema eleitoral e a acabar nos regimentos que retiram sistematicamente direitos, responsabilidades e funções aos deputados, seguramente um dos factores singulares mais responsáveis pela marginalidade da Assembleia da República, pela sua automutilação, pela subserviência das maiorias perante os Governos e pela inferior qualidade politica e técnica do trabalho legislativo, descreve.

Para além desse diagnóstico corajoso, “Regime Jurídico das Assembleias Representativas em Moçambique”, é um estudo abrangente. Carlos Pedro Mondlane, no seu discurso de apresentação, destacou a “elegância conceptual” do autor ao percorrer o caminho histórico desde a Assembleia Popular de 1975 – um “instrumento de mobilização política” – até ao modelo pluralista de hoje. É na apresentação deste que fica clarificado que o livro examina com precisão as três funções cardinais das assembleias, nomeadamente a função representativa, a “espinha dorsal”, que define a relação de confiança com o povo. E seguem-se a função legislativa e a função fiscalizadora.

De referir que a obra foi lançada com apoio do Instituto para Democracia Multipartidária (IMD), no âmbito do projecto “Reforçando o Papel de Fiscalização do Parlamento Moçambicano e das Assembleias Provinciais na Governação da Indústria Extractiva e Mudanças Climáticas”. Hermenegildo Mulhovo, director executivo do IMD, destacou a importância de promover a reflexão académica e institucional sobre a democracia moçambicana.

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